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Paraíso

John Milton

Coincidências felizes: termino a leitura de “Paraíso Perdido”, que a Cotovia publicou entre nós com tradução excepcional de Daniel Jonas (um nome a reter). E então reparo que em 2008 passam 400 anos sobre o nascimento de John Milton. Estranho: apesar da data redonda, não parece haver o entusiasmo comemorativo que se devota a outras figuras bem menores (a canonização recente de Simone de Beauvoir ilustra o mundo grotesco em que vivemos). Como explicar isto? Verdade que Milton faz parte do “cânone”, o que não deixa de ser um crime para as patrulhas multiculturalistas que negam, desde logo, a própria existência de um “cânone” literário ocidental. E, além disso, falar de Milton é falar de um autor “morto, branco e macho”. Infelizmente para as patrulhas, Milton não apenas faz parte do “cânone” como não parece ser perceptível fora dele: Homero e Virgílio pairam sobre as páginas de Paraíso Perdido, seja em evocações metafóricas ou em personagens míticas, de Aquiles a Eneias.

Mas Paraíso Perdido não pretende apenas emular os épicos da Antiguidade (e, por arrastamento, inaugurar o género em Inglaterra, tarefa que Milton expressamente chama a si com brutal imodéstia). Ao ler a narração poética e poderosamente bela da Queda do Homem, é difícil não sentir uma admiração heterodoxa pela personagem que precipita essa Queda: Satanás. Porquê? Sim, a coragem da criatura, a inteligência perversa, típica de um renegado, e o desafio permanente à autoridade de Deus são tratados com uma grandeza que talvez só o republicanismo regicida de Milton explique inteiramente. Mas será redutor confundir a biografia política de Milton com a biografia do seu diabólico “herói”. Até porque o heroísmo de Satanás não está expresso nos seus actos, mas no Homem que ele seduz e que sai do Éden (e do livro) com a dignidade intacta. Um paradoxo? Não creio. Às vezes, é preciso perder o Paraíso para encontrar a liberdade essencial que só o conhecimento permite.

Por: João Pereira Coutinho

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