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Para queimar

A propósito da vergonha nacional em que se transformou o caso Maddie, que pôs a nu os métodos kafkianos da nossa justiça, o amadorismo da PJ e do Ministério Público e a anedota em que se transformou o segredo de justiça, tem-se apontado o dedo a muita gente. A comunicação social tem sido relativamente poupada. As informações que foram saindo na imprensa eram, ao que tudo indica, quase todas falsas. Sedentos de publicar qualquer coisa, confirmada ou não, muitos jornalistas foram, durante meses, um canal de intoxicação sem peneira. As pessoas queriam saber coisas e coisas eram ditas. Se era verdade ou mentira, isso não foi critério importante.

Há uns anos, Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues passaram pela mesma experiência. E apesar de garantida a sua inocência nunca serão inocentes. Foram julgados e condenados pela irresponsabilidade de muitos jornalistas e pela histeria justiceira de muitos cidadãos que olham para a tragédia alheia como se de uma telenovela se tratasse.

Nada disto é apenas português. Apenas uma diferença: no Reino Unido a imprensa indemnizou Robert Murat, vítima do delírio noticioso. Aqui, Pedroso, Ferro, os pais de Madeleine McCann ou o próprio Murat podem esperar sentados. A regra portuguesa é simples: o bom nome de quem tem nome é sagrado, até aos limites da censura. Mas se alguém cai em desgraça e se torna protagonista de uma novela judicial perde logo o estatuto de cidadão. É para queimar.

Lixo humano

Itália teve um sobressalto ao ver uma fotografia. Deitados na praia de Torregaveta, nos arredores de Nápoles, cobertos por toalhas, os cadáveres de duas crianças de 11 e 13 anos. Duas crianças ciganas que morreram afogadas. Ali ficaram durante uma hora. Indiferentes, os banhistas apanhavam sol, jogavam à bola, petiscavam no bar, a poucos metros dos corpos inanimados. “Estas são as imagens da nossa cidade que não queríamos ver”, disse Crescenzo Sepe, o arcebispo de Nápoles. Pior do que as do lixo amontoado nas ruas. Pode ser que seja apenas indiferença perante a tragédia que não passa na televisão. Mas a Itália civilizada que ainda existe tem todas as dúvidas. Vieram logo à memória as imagens dos acampamentos de ciganos de Nápoles em chamas, há poucas semanas. Incendiados por cidadãos amantes da lei e da ordem, entre os quais foram reconhecidos alguns membros da camorra. E foram recordadas as leis de Berlusconi para um recenseamento com regras especiais para os ciganos, a fazer lembrar a estrela de David nas lapelas de judeus.

Auschwitz, campos de detenção de americanos de origem nipónica na Segunda Guerra, Bósnia, Ruanda, espancamento de imigrantes na África do Sul… Não foram extraterrestres que tornaram tudo isto possível. A bestialização do outro, a indiferença perante o seu sofrimento, o ódio de tribo são tão velhos como a humanidade. O monstro está em todos nós. Basta uma distracção, basta esquecermos o passado, basta darmos ouvidos aos populistas de cada momento e ele volta a acordar. Está sempre à espreita. Até os cadáveres de duas crianças serem como lixo que espera ser recolhido.

Por: Daniel Oliveira

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