1. Admiro a desenvoltura com que os jornais e estações de televisão de hoje se acantonam num lado da barricada e recusam sistematicamente ouvir as outras vozes. É verdade que para se construir a coerência é necessário que o coro esteja bem afinado mas daí até às palas nos olhos vai um passo de ladrão. Por isso estremeço quando vejo o jornal dos casos, dos acidentes e dos crimes privilegiar em colunas e entrevistas os sindicatos das forças de segurança, sempre ciosos dos seus direitos e privilégios. Como uma retribuição pelas informações que vão escorregando. Desabafo “mais uma não!” quando vejo um canal campeão de audiências promover num longo e fastidioso telejornal as rádios do seu grupo ou fazer um direto sobre as gravações da sua telenovela. Arrepio-me ao não ver nas colunas de opinião de um site de informação política a diversidade que favorece o confronto. Mas o supremo efeito é quando descobrimos numa coluna de um qualquer jornal que, por detrás da defesa de uma causa corporativa, afinal está uma pessoa que tem interesses (nomeadamente familiares) nessa área. Queiramos ou não, o sangue familiar ajuda a aquecer e a destemperar opiniões, num efeito de focar a árvore e esquecer a floresta. Não é?
2. E no século da liberdade (ou da pós-liberdade) descobrimos que afinal nem tudo se pode dizer. Ou nem tudo se pode dizer de qualquer maneira. Que o diga a juíza do caso Carrilho, que optou por um estilo terra a terra mas que visivelmente não tinha treinado em casa. Aliás bastava ter perguntado a alguém da família ou do coletivo de juízes se aquilo ia cair bem que qualquer pessoa lhe diria que ia dar naquele desastre. Os juízes e magistrados, dadas as características da sua função e o comedimento e reserva que se lhes pede, tornam-se sensíveis quando falam em público e quando são escrutinados, coisa que parece fora do âmbito da sua função de soberania. Não admira pois que dominem mal a palavra pública e que os possamos considerar ainda “de outra era”.
Coisa de algum modo semelhante se passa na educação, onde muitas vezes o professor tem de segurar a palavra ou o gesto contundente para assegurar a diplomacia e as conveniências, não dizendo a verdade que se impunha mas tendo que dominar a palavra para dar a entender a gravidade dos atos ou das palavras de um qualquer jovem impertinente. O educador acaba por aceitar que os meios termos não resolvem nada e que tudo fica num quase-terreno de ninguém, sem o educador poder sancionar nem o jovem se sentir sancionado.
3.Cada vez temos mais dificuldade em escrever à mão e cada vez é mais difícil pedir a alguém para escrever à mão, para tomar notas por exemplo. As consequências que esta perda de hábito vai ter são ainda insondáveis mas coisa boa não vem aí. O trabalho com teclas, com a viciação do gesto e a assunção dos telemóveis como extensão da mão, trouxe o fim de linha da atividades manuais e constitui mesmo uma mudança de paradigma na aprendizagem. Na escola já tinha quase desaparecido o fazer coisas à mão em disciplinas como Trabalhos Manuais. Agora é a escrita que é recusada e torna-se quase um castigo levar os jovens a escrever aquilo que os professores consideram positivo guardar como anotações de uma qualquer tarefa. Por outro lado, a teoria do trabalho escolar como copiar + colar veio reforçar a perversidade da escrita à mão. Aquilo que provocará na anatomia da mão, habituada à tecnologia da caneta durante muitos séculos, demorará algum tempo a saber. Imaginar um escritor a escrever o seu livro à mão, se já era tarefa difícil de imaginar, torna-se penoso quando, num gesto comemorativo relativo a Vergílio Ferreira, propomos aos jovens que simulem escrever uma página de um dos seus romances famosos. Para além da crise da generosidade, que já não é o que era, nomeadamente quando se trata de dar tempo, levar a escrever uma página de Vergílio Ferreira à mão é quase uma subida ao Gólgota de onde se não volta vivo.
4.As narrativas dos novos escritores são como o nosso tempo. Quando tudo já se contou da maneira mais tradicional, há que complicar, baralhar e voltar a dar. É preciso é ter um olhar, uma destreza narrativa, a capacidade de não ser reconhecido como outro e construir “a sua voz”. Depois é abrir os olhos e os ouvidos ao mundo descoroçoante em que vivemos. Quatro páginas do Correio da Manhã mostram-nos à saciedade que nada é impossível e que uma qualquer narrativa não pode escrever o séc. XXI com as tintas do neorrealismo panfletário. Isso mesmo: o mundo é tão estimulante e incrível hoje que é cada vez mais difícil escrever ficção. Porque esta dificilmente atinge as raias incríveis das cores vermelhas do real, optando por ocultar, deformar, fantasiar, evitar um efeito de “dejà vu”. Jacinto Lucas Pires, que veio à Guarda apresentar o novo livro de contos (“Grosso Modo”), parte de situações que diríamos absurdas, desde um quadro bancário em situação estável que de repente entrega a fortuna aos pobres ou de um ponta de lança em crise de golos e que procura na religião uma saída para a falta de pontaria.
(Jacinto Lucas Pires, “Grosso Modo”, Livros Cotovia, Lisboa, 2016. Como é possível que, havendo conversadores tão bons como JLP ou há pouco tempo Rui Zink, o público da Guarda torça o nariz às apresentações de livros que não sejam da paróquia?)
Por: Joaquim Igreja