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Os portugueses de Tréfaut e os outros

Theatrum mundi

Eis-nos outra vez na véspera de competições desportivas internacionais que prometem exaltar o sentimento nacional. Como em ocasiões anteriores, e neste aspecto o Euro 2004 foi paradigmático, o futebol promete fazer esquecer o défice, o desemprego e a quebra de competitividade que afectam Portugal e que nos atiram para a falta de confiança e a crise social. Dizendo-o de outra maneira, os comentadores de turno prometem-nos o futebol como solução para todas as insuficiências da nossa sociedade (e não é isto que fazem durante toda a época futebolística?) e substituto da produtividade de que carecemos. Torcer pela selecção nacional de futebol num dia de Verão, sofrer em frente da televisão até à apoplexia, é o contributo supremo que cada português deve dar em prol da comunidade. Todos somos convocados nessa essa épica chamada. Primeiro as mulheres, apanhadas finalmente no irresistível turbilhão do negócio do futebol, formarão “a mais bela bandeira do mundo”, um evento encantador (que promete actividades para os pais e os filhos, pois o futebol é sobretudo integrador…) promovido por uma entidade bancária em colaboração com uma televisão; depois será a vez de todas as famílias se voltarem a debruçar em propícios estendais, marquises e janelas para pendurarem sucedâneos mais ou menos fiéis da bandeira das quinas. Alguns desses sucedâneos voltarão a mostrar pagodes chineses em vez dos castelos mouros, a trocar o verde pelo vermelho na proporção dos campos e a condenar o escudo à incómoda posição de ‘pernas para o ar’. Tanto dá; haverá sempre quem diga que a culpa é da globalização e que o que afinal importa não são as formas mas, antes, o que as pessoas estão a sentir (na maior parte das vezes, nada…). Resta saber de onde virá, desta vez, a chamada e quem disputará a autoria de tão patriótico acto.

E entretanto, está estes dias em exibição, em duas salas de Lisboa e Porto, um filme/documentário que lança uma outra chamada ao país. Menos ‘patriótica’, talvez, mas certamente, e incomparavelmente, mais urgente. Sérgio Tréfaut, o realizador, chamou-lhe Lisboetas, mas também o podia baptizar simplesmente de Portugueses, pois se o filme nos apresenta aqueles que “há menos tempo” chegaram a Lisboa e aí se fixaram para viver e trabalhar, esses homens e mulheres representam todos os outros que têm encontrado em Portugal a sua nova casa. Esta é assim a chamada para que todos conheçamos melhor a sociedade em que vivemos, para que tomemos contacto com as diferentes formas em que está a mudar e para que compreendamos a riqueza que essa mudança traz em potência. No filme de Tréfaut podemos encontrar o rostro menos visível de Lisboa (não invisível porque, na verdade, esse rosto está ao alcance da retina de todos. Bastante ser curioso e querer conhecer). É a Lisboa daqueles que a transformaram no plano B das suas vidas, que nela vão realizando os sonhos possíveis ou que se confrontam com a sua impossibilidade. O melhor do filme é que Tréfaut não cai no simplismo sentimentalista. Como manifestou numa entrevista recente, o seu único objectivo é o de mostrar uma casa que conhecemos mas em que descobrimos portas para novos quartos, novos mundos. A chamada é para que abramos essas portas e conheçamos quem vive lá dentro e como vive. Estou certo de que o TMG não vai querer perder a oportunidade de exibir este documento crucial para compreendermos quem são hoje os portugueses e o que é hoje Portugal: uma realidade cada vez mais multicultural.

Por: Marcos Farias Ferreira

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