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Os nós e os outros

Observatório de Ornitorrincos

Certo dia, um estranho aproximou-se de mim na rua, observou-me uns segundos e disse: “Desculpe, julguei que era outra pessoa”. Respondi-lhe: “E sou”.

Mário de Sá-Carneiro tinha a mania de que ele não era ele nem era o outro, era qualquer coisa de intermédio. Terá sido essa confusão entre ele mesmo e o espaço vazio que o levou a disparar uma pistola onde julgava estar qualquer coisa de intermédio e acertar em cheio na cabeça. O seu amigo Fernando Pessoa achava que era vários homens ao mesmo tempo, mas a verdade é que nenhum deles conseguiu afiambrar – passe a expressão erudita – a pequena Ofélia. Se um tipo não escreve poesia para impressionar as miúdas, é melhor dedicar-se à apanha dos míscaros – claro que há diferenças de estatuto nestas duas actividades: uma coisa é alguém dedicar-se ao lirismo da captação dos significados no mistério da existência, outra coisa é ser poeta.

Há estudos – deve haver, quase de certeza; aposto que alguém já fez um, é só procurar – que provam que todos nós quereríamos ser outra pessoa qualquer. José Sócrates não desdenharia ser presidente dos Estados Unidos para não aturar portugueses, Carlos Queiroz trocaria de bom grado metade da selecção das quinas por suplentes argentinos e os Delfins gostariam de ter escrito, nem que fosse por acaso, uma canção de jeito.

Pode alguém ser quem não é? Não sabemos. Sérgio Godinho, que perguntava isto várias vezes numa canção, talvez saiba. Mas responder-nos à pergunta, está quieto. O mais que faz é dizer-nos que “é estranho no ventre ser de outro lugar e tão confusamente ver desmoronar um a um sonhos sãos”. Obrigado, senhor cantor. Afinal podemos ser quem não somos ou não? É que isso de ver desfazer sonhos saudáveis e sentir dores de barriga noutro sítio é a cantilena dos utentes do centro de saúde de Valença do Minho, que agora vão tratar das cólicas a Tui.

Os valençanos penduraram nas janelas bandeiras espanholas para protestar contra a decisão do governo de Lisboa e para agradecer a disponibilidade da autarquia espanhola. Quem tem boas razões para protestar não são as gentes de Valença e arredores, mas o resto dos portugueses que vivem longe da fronteira. Esses minhotos, mais celtas que lusitanos, têm uma sorte desgraçada. Centralismo de Lisboa? Não brinquem. O que todas as cidades portuguesas afrontadas pelo governo vão começar a reclamar é ficarem mesmo ao lado da fronteira com Espanha. A Guarda não tem pediatras? Pinhel para Castela. Viseu não tem universidade? Moimenta da Beira para Leão. A Covilhã não tem cinema decente? Recorra-se ao crime de pirataria, que os espanhóis dobram os filmes todos.

Montemor-o-Velho, uma vila decente especializada em festivais de teatro – além da feira medieval e do certame internacional, é ali que decorre a educação das minhas sobrinhas –, merece também uma cidade espanhola nas redondezas. Proponho que se crie uma província espanhola na Figueira da Foz. Não apenas em Agosto, como actualmente, mas também durante o resto do ano. Resolvíamos assim dois problemas: a distância que vai de Coimbra, Leiria e Aveiro à fronteira actual e a preocupação dos ministros portugueses das Obras Públicas com as praias onde os cidadãos espanhóis possam passar férias.

Afinal, pode alguém ser quem não é? Poder, pode. Mas se calhar era a mesma coisa.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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