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Os litigantes

Em Portugal, todos gostam de ser tratados nas palminhas. É Senhor Doutor para cá, Senhor Engenheiro para lá, Vossa Excelência em todas as direcções. Quando alguém os trata à bruta, há logo processo pela certa. É aquela palavra, ou então outra, ou ainda aquela expressão que, entendida de “determinada maneira”, coloca em causa a preciosa honra de alguém. Acredito que o entupimento dos tribunais se reduziria substancialmente se os vidrinhos em que se transformaram as almas de muito ganhassem alguma solidez, ou então se os seus susceptíveis portadores ganhassem alguma masculinidade (mesmo assim, acreditem ou não, há muitos mais homens do que mulheres a queixar-se de crimes contra a honra).

Seja como for, perdeu-se em Portugal a arte da discussão. A troca de argumentos tem de ser feita com a adequada dose de mesuras e fórmulas de polidez. Não se pode dizer “você é uma besta”, é obrigatório optar-se por “talvez Vossa Excelência não tenha totalmente razão”. Se um cretino disser “dois e dois são cinco”, não se pode dizer “o senhor é burro, ou então não sabe fazer contas” – sob pena de se ter de pagar mil euros em tribunal pela invocação do asno, e sem possibilidade de discutir as contas.

Se continuarmos por este caminho, perdemos o direito à indignação e à rudeza. Não temos de andar sempre de chapéu na mão, a fazer vénias a torto e a direito, a procurar formas de manifestar a nossa discordância sem ofender. São piores as ofensas à inteligência e à razão, até pelas suas consequências, do que os beliscões à putativa honra de quem não tem razão nenhuma. Ainda há quem procure trabalhar e fazer o seu melhor e seja indiferente às complicadas regras que definem o que é adequado ou não dizer-se. Há também, infelizmente, os profissionais da litigância, aqueles que escondem a sua mediocridade atrás de um gigantesco ego e de uma sobrenatural capacidade de se sentirem ofendidos com tudo o que se lhes diga e seja incompatível com o que querem ouvir. Quando uns se cruzam com os outros dá sempre asneira: os primeiros não têm paciência para os segundos, usam uma ou outra palavra mal escolhida e acabam sentados no banco dos réus, mesmo tendo razão na substância. Soluções definitivas para isto não há, mas podemos começar por ficar mais atentos.

Por: António Ferreira

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