Os heróis costumavam ser exemplos de comportamento a todos os níveis. Diziam sempre a verdade, eram incorruptíveis, corajosos, leais, generosos, fiéis à sua dama e à sua pátria, sóbrios, cultos e tudo o mais que se achasse obrigatório num perfeito cavalheiro. Eram, em suma, um aborrecido poço de virtudes. A literatura moderna procurou heróis mais reais, com qualidades mais comuns e com quem o comum mortal se pudesse identificar.
Foi assim que Sir Gallaaz, Lancelot, Ivanhoe, deixaram de ser modelos de comportamento para a juventude. Diríamos nós, portugueses, que muito bem. Não foi a leitura dos romances de cavalaria que atirou D. Sebastião para a sua trágica aventura africana?
Há um problema. Quando a literatura e o cinema, para conferirem credibilidade às suas personagens lhes enfatizam os defeitos, estão ao mesmo tempo a valorizar esses defeitos. Dirão que isso nada tem de mal e que errar é humano? É verdade que errar é humano, mas há que pensar em que méritos se encontram quando se concretizam esses defeitos. Ou agora passou a ser positivo mentir, trair? Ou passaram a ser virtudes a cobardia, a mesquinhez, a corrupção, a ignorância?
Às vezes parece que sim. Dizia-me alguém em tempos, muito contente de si, que gostava era de “sacanagem”. Ignorava certamente a origem da palavra “sacana” (do japonês, em que “sakana” significa “que ou aquele que masturba outrem”), mas não ignorava, suponho, que é errado ser aldrabão, desleal, corrupto. A questão é que passou a contar com a tolerância que as suas “sacanagens” despertavam. Tinha passado a ser um anti-herói, um filho da puta simpático.
Vivemos assim no tempo dos anti-heróis, do repúdio dos “falsos” (?) moralismos, do desprezo pelos “anjinhos” e “santinhos”, da total relativização e apropriação da verdade para o serviço dos fins. Tenho dois casos a expor:
Em primeiro lugar, quando Fernando Santos apoia o seu atleta Elpídio (raio de nome) Silva, que se atirou ao chão para simular um penalti no último Benfica-Sporting. Deixou dito, por outras palavras, que o acto não era reprovável – mesmo sabendo-se que marcou um jogo importante. Recordo aqui o Ronaldo dos tempos do Barcelona, que era derrubado dentro da grande área e se levantava de imediato atrás da bola. Ronaldo seria obviamente repreendido por Fernando Santos, que, também obviamente, põe os fins como justificação para todos os (mesmo que reprováveis) meios.
Em segundo lugar, quando Alberto João Jardim, confrontado com o relatório de uma organização não governamental sobre pedofilia na Madeira, vem a desvalorizar esse relatório com o argumento de que havia elementos dessa organização que apareciam como candidatos nas listas do Partido Comunista. Isto é o anti-herói puro e duro, passeando pela cidade do Funchal, a idólatra, todo o seu esplendor. O que Alberto João Jardim quer que o mundo saiba é que a pedofilia na Madeira não existe. Mesmo que exista. A mensagem que transmite é que o Governo Regional da Madeira não quer a investigação da pedofilia na ilha, mesma que a haja. O que ele diz aos pedófilos de todo o mundo é: “venham à Madeira, aqui serão deixados em paz”. E tudo isto para voltar a ser eleito.
Por: António Ferreira