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Ora essa!

I. O poeta é um fingidor, mas só porque o desencanto nunca é filosófico, mas poético, porque apenas a poesia é capaz de representar as contradições sem as resolver, compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical, enquanto esse desencanto, ao mesmo tempo que corrige a utopia, moderando o seu pathos profético e finalista, reforça o seu elemento fundamental, a esperança, pois que a esperança não nasce de uma visão do mundo tranquilizadora e optimista, mas sim da dilaceração da existência, vivida e sofrida sem véus, que cria uma irreprimível necessidade de resgate perante o mal, o mal que é simplesmente a radical insensatez com que se apresenta o mundo, a mesma que exige que a perscrutemos em profundidade, o poeta é um fingidor, nada mais, porque não hesita em denunciar uma ferida profunda que lhe coloca dificuldades na realização plena, tanto mais que “ambicionar viver é coisa de megalómanos”, como escreveu Ibsen, querendo com isto talvez dizer que só a consciência do árduo e temerário que é aspirar à vida autêntica pode permitir que nos aproximemos dela, tão completamente que até parece dor a limalha irisada que nos cobre, nesse momento, como que numa exclamação incontida de glória…

II. Entre outros acontecimentos editoriais da temporada, destaco a entrevista da escritora margarida rebelo pinto a carlos vaz marques para a revista ler, a tal que muitos consideram o expoente da chamada literatura light, que a páginas tantas chegou a desligar o gravador quando lhe subiu a mostarda, não aguentou a referência à polémica lançada por “couves & alforrecas: os segredos da escrita de MRP” (editora objecto cardíaco, 2006) de joão pedro george – que parte de um texto que publicou em 2005 no blogue esplanar, onde os expedientes criativos de mrp são dissecados de forma particularmente mordaz, retirado depois devido à publicação em livro, e graças ao qual a escritora e a editora oficina do livro interpuseram uma providência cautelar para impedir a sua venda – quando não conseguiu admitir que se repetia de uns livros para os outros, copy/paste afinal não é pecado na literatura que fala das coisas como elas são, mas não são, essa e que é essa, sem cedilha, as coisas nunca foram o que são, e a literatura nunca falou das coisas, mas que coisas, ora, para as semi-tias coisas são uma espécie de galeria de objectos bizarros, colecção almodôvar de carcavelos, escrever por necessidade, sei lá, ter sempre à mão uma colecção de situações comuns para pessoas comuns, guardar um ódio militante à misantropia cultivada pelos escritores, os tais que um dia se mandam pela janela, como o Sá-Carneiro e assim, diz ela, só que o Sá-Carneiro usou estricnina, manter as distâncias face ao cânone da crítica, ao pedigree da inteligentzia, mas tá bem, afinal somos todos mais parecidos do que parece, diz ela, então não somos?, esta impostura de uma burguesia urbana às voltas com a libertação dos costumes, mas ainda com o lastro do preconceito e da arrogância, ainda encarcerada no espartilho da culpabilidade católica, ainda tomada pelo quadro mental definido por António Ferro nos anos 30 para um Portugal do “folclore”, dos “pequeninos” e da “paisagem” que é tudo o resto, a intérprete maior de uma metafísica em formato reality show, que não há maneira de descolar do solo ou do divã do psicanalista, que anda ali, e tal, um dia estamos cá, no outro já não, diz ela. pois.

III. Eis algumas ideias para projectos que poderiam preencher a lacuna que a ausência de imprensa escrita especializada vai tornando maior: 1. A Abril poderia criar uma mini-Bravo em edição Lusa, mantendo o mesmo estilo que mistura um musculado sentido comercial com sofisticação gráfica e editorial. Terá a Abril coragem de arriscar num projecto deste cariz neste confuso rectângulo lusofalante?.(já pararam de rir?) 2. Será preciso lembrar que tanto a Review of Books de Nova Iorque como a de Londres surgiram como resposta a períodos de crise na imprensa escrita? Se o fim de suplementos e o emagrecimento de secções culturais por esses jornais de referência significar um aumento de críticos e cronistas aptos, ávidos e sem emprego, porque não fazer o que outros fizeram antes e com sucesso? As editoras teriam todo o interesse em pagar com publicidade a existência de um projecto independente de interesses de monolíticos grupos de media. 3. Um mercado editorial como o nosso precisa de, no mínimo, 2 revistas concorrentes e activas. Se ao fim destes anos, o esforço nacional não conseguiu produzir mais do que uma revista mensal e uma revista-que-agora-se-diz-anual, está na hora de os espanhóis ou os franceses entrarem na liça. Se a edição portuguesa do Courrier International parece estar a caminhar bem, porque não uma Ler que seja de facto para ler todos os meses, ou uma Que Leer? que se junte à festa e crie concorrência? 4. Se eles já cá estão a investir no mercado editorial, se os agentes deles levam a fatia mais gorda dos advances e dos royalties pagos por editoras portuguesas, e se está provado que os seus jornais de referência sabem dar valor aos suplementos, porque não esperar ter, por exemplo, um Babelia Portugal aos Sábados, nem que seja com 4 páginas (as mesmas, ao fim e ao cabo, do Ipsilon para os livros)?

Por: António Godinho

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