Não sou antropólogo nem sociólogo mas atrevo-me a dizer que na sociedade moderna continuam a persistir tabus difíceis de abordar. Mais do que temas como o sexo, a eutanásia, o suicídio, a homossexualidade, existem dois temas de que quase nunca se fala por pudor moral e constrangimentos sociais: o incesto e o canibalismo. Só pronunciar estas duas palavras faz tremer de horror os mais sensíveis. É compreensível. Ambas práticas remontam a um passado histórico muito longínquo, tão longínquo quanto o tempo que o homem pisa o mundo. Deixemos o incesto para segundas núpcias (salvo seja) e olhemos mais de perto o canibalismo. Por questões culturais ou de necessidade devido à fome extrema, o canibalismo não deixa ninguém indiferente, porquanto hedionda se torna a sua prática. Mas como outros temas igualmente hediondos, este também não deixa de exercer um certo fascínio. Um fascínio frio, mórbido e racional, como é óbvio. O acto de devorar carne humana por questões religiosas (magia negra) ou culturais é um acto irracional e completamente desviante (associado a mentes psicopatas e paranóicas). Já o acto de comer por extrema necessidade com vista à própria sobrevivência devido a factores externos como a fome alivia o peso moral do acto. E a história regista muitos casos destes, sobretudo resultantes de guerras e fome extrema. Foi o que aconteceu em Outubro de 1972, quando teve início uma das histórias de sobrevivência mais controversas e inspiradoras: um avião que transportava uma equipa júnior de râguebi do Uruguai despenhou-se nas montanhas dos Andes. Alguns passageiros tiveram morte imediata, mas a maior parte sobreviveu. Durante oito dias, ficaram à espera de serem salvos. Mas o socorro nunca chegou e eles souberam pela rádio que as buscas tinham sido abandonadas. Rapidamente a comida e a bebida se esgotaram. Forçados a viver a temperaturas abaixo de zero durante dez semanas, os sobreviventes suportaram o inimaginável até que tomaram uma decisão radical: comer a carne dos colegas mortos. O filme “Alive” (“Estamos Vivos!”, 1993) retrata este episódio perturbante.
Mas o que mais choca no canibalismo é aquela vertente que conota o acto de comer carne humana como a mais elevada expressão de poder da mente de um predador sexual psicopata ou de um assassino em série. E ao longo da história, sobretudo do século XX, muitos exemplos macabros houve que se enquadram nesta tipologia. O mais recente caso é o do alemão Armin Meiwes, canibal de Rotemburgo, que violou e torturou um outro homem que conheceu na internet e que se voluntariou para o efeito. Depois de morto, fatiou o corpo e comeu diversas porções do mesmo (degustou 20 kg de carne) – relato sintetizado que pode ser lido na internet. Da carne humana disse Armin: “é semelhante ao da carne de porco, um pouco mais amarga e mais forte, mas um sabor muito bom.” E o que dizer do aparentemente tranquilo fazendeiro americano Ed Gein (1906 – 1984), que serviu de inspiração para os filmes “Psycho” e “O Silêncio dos Inocentes”. Hannibal – “The Cannibal” – Lecter não é apenas um mero personagem de ficção, visto que o bem real assassino Ed Gein serviu de inspiração para o filme de Jonathan Demme. E o que dizer de Andrei Chikatilo, o carniceiro de Rostov (Rússia), que confessou ter morto, torturado, violado e comido o corpo de 53 mulheres e crianças entre 1978 e 1990? E o mais famoso e recente serial-killer americano: Jeffrey Dahmer, deu que falar quando foi descoberto, em princípios de 1990, e se descobriu que tinha sido autor de horríveis crimes que misturavam violação, necrofilia e canibalismo. E exemplos grotescos não faltam… No cinema, o filme mais célebre e polémico sobre canibalismo é o perturbador “Holocausto Canibal” (1980) de Ruggero Deodato, um suposto “snuff movie” (que não é) com violência gráfica e horror sem escrúpulos.
Um dos livros que desmistifica o tabu sobre o canibalismo é “Come o Teu Próximo – História do Canibalismo” (Editorial Magnólia), dos historiadores e antropólogos Daniel Diehl e Mark P. Donneley. Um ensaio sério e rigoroso mas que custa a ler pelo conteúdo explícito. É um livro duríssimo, que explora as raízes do canibalismo e as várias configurações do mesmo, oferecendo exemplos ilustrativos das práticas canibais das tribos mais isoladas e obscuras aos serial-killers mais psicóticos das sociedades modernas, percorrendo um curso temporal que vai da história antiga à actualidade. É um mergulho sem regresso aos nossos próprios medos e temores, um confronto directo com o mundo mais obscuro e demente da natureza humana. O último dos tabus.
Por: Victor Afonso