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O sagrado e o profano

Letra A

Enquanto fenómeno de luta política, não surpreende a onda de choque levantada pela publicação de doze cartoons no jornal dinamarquês Jyllands–Posten, em Setembro do ano passado, e que depois foram reproduzidos em vários jornais europeus, onde as hierofanias islâmicas são objecto da sátira. Sobre o assunto já quase tudo se disse. De um lado, aqueles que pressentiram que estava em causa a liberdade de expressão e o Estado secular, activos fundamentais do património histórico e cultural europeu, mas também categorias universais de pendor kantiano. Do outro, numa aliança aparentemente contra natura, a esquerda parada no tempo e a direita ultramontana alinharam na habitual cartilha politicamente correcta do complexo colonial, do relativismo e da defesa do indefensável. Mas a quem aproveita a fúria destrutiva das hordas vociferantes do crescente, tornadas o lumpen proletariado ao serviço de Deus, senão aos teocratas que as lideram e manipulam a seu bel-prazer? Mas o impacto da violência desencadeada nas “ruas” do Islão não aproveitará também aos fundamentalistas de “cá”? É sintomático que a indignação dos manifestantes tenha recolhido, desde a primeira hora, o apoio de Le Pen…Adivinha-se também facilmente a posição de certas seitas fundamentalistas americanas, que já conseguiram erradicar o ensino da teoria da evolução nas escolas de certos Estados federais… Essa indignação acabará por ter, mais cedo ou mais tarde, a devida cotação nos mercados financeiros ligados ao petróleo e tudo regressará à “normalidade”, convenientemente policiada pelas oligarquias no poder, acolitadas pelos líderes religiosos e agitadores fundamentalistas do costume. Salvaguardados os lucros e os privilégios, business as usual. E é claro que neste jogo não há inocentes. De um lado e do outro.

No entanto, pouco se tem dito sobre o facto em si: o significado da decisão editorial de publicar cartoons que caricaturam o profeta Maomé e não só, embora, repito, a questão levantada pela sua publicação seja fundamentalmente política. É de salientar que, enquanto objecto artístico, as ilustrações têm grande qualidade, são mordazes quanto baste. Sobretudo o da autoria de Plantu, publicado no “Le Monde” onde um lápis em forma de minarete desenrola uma sucessão de linhas onde se lê “je ne dois pas dessiner Mahomet” e que acabam por formar o rosto do profeta, assinalando o interdito sob a vigilância inquisitorial de um muhezzin no alto do lápis. Ora, se o riso é próprio do Homem – embora se diga ser um atributo de Deus – o humor, pelos vistos, ainda não adquiriu essa qualidade universal e partilhada por todas as culturas. Nem podia. O sagrado impõe as suas regras precisamente porque não pode ser questionado, a não ser pela invocação de outro sagrado. A negação do sagrado é pois menos destrutiva do que a sua lenta dissolução através da sátira e dos costumes, o “humano demasiado humano”, uma derrisão que faz cair pela base os poderes organizados em seu nome. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, uma hipótese dilacerante que acompanha Dostoievski ao longo da sua obra, exemplarmente ilustrada no último capítulo de “Os Possessos”, censurado na versão original, onde Dmitri conta as suas infâmias a um Pope misantropo, que em desespero lhe atira que “pior do que não ter Deus é não ter Deus nenhum”. Por outro lado, não é só a figuração que é interdita na arte islâmica. A noção de representação é estranha ao Islão, por imperativos religiosos, sendo impensável a existência do teatro, em qualquer uma das suas categorias. Mesmo a dança vertiginosa dos Sufis é um ritual extático de ordem mística. Significativamente, foi em grande medida a partir do teatro grego que nasceu o Ocidente enquanto entidade cultural. Essa capacidade de nos rirmos de nós próprios enquanto seres que a tragédia destrói e redime. O humor é pois o agente dissolvente por natureza, mas a forma como ele é valorizado é também um sintoma de saúde democrática. É crucial perceber que a liberdade de expressão, com os outros direitos fundamentais como seu limite natural, é nas suas margens que tem que ser defendida e quiçá avaliada. Goste-se ou não do que ela veicula. Esta história está para durar…

Por: António Godinho

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