Daqui a duzentos anos, se forem ainda publicadas actualizações da História de Portugal, vamos ter, como principais figuras do nosso século XX, Salazar e Soares. A História vai reter a teimosia de Salazar na manutenção do Império Colonial, contra todos as correntes da modernidade e contra os direitos básicos e universais de todos os povos à autodeterminação e à independência. Vai reter também o papel de Mário Soares na devolução de Portugal ao século XX. Escrever-se-á sobre a guerra colonial e sobre o seu fim. Sobre as pontes aéreas que fizeram regressar à “Metrópole”, em escassos meses, milhões de pessoas. Sobre a “desconstrução” do Império e sobre o papel de Soares nessa desconstrução, ele, que foi ministro dos negócios estrangeiros no período das mais duras e difíceis negociações com os movimentos de libertação das colónias. No mesmo período em que, se se recordam, o Estado Português acabava de sair de uma revolução e lutava, dia a dia, para não cair na rua. Esta, a rua, acabou por atribuir a Soares o (relativo, muito relativo) fracasso da descolonização – esquecendo as responsabilidades dos militares, do Conselho da Revolução e do PCP em todo o processo.
Veio depois o PREC e o dia em que, estando o país à beira da guerra civil, Soares fez sair à rua os muitos milhares de portugueses, ou milhões, que obrigaram Portugal ao regresso, primeiro à normalidade e, depois, à democracia.
Aconteceu ainda o ingresso de Portugal na Comunidade Económica Europeia, guiado por Mário Soares. Portugal, se bem se lembram, era um proscrito da comunidade internacional. Éramos uma espécie de Coreia do Norte, ou uma possível “Cuba da Europa”. A importância que nos era dada era mais fruto da inquietação que provocávamos do que da nossa real importância. A Europa e os EUA não queriam em Portugal uma república popular socialista, e nunca a admitiriam, dada a relevância estratégica da nossa situação geográfica.
O que Soares conseguiu, os caminhos que ele abriu, Cavaco desperdiçou – como se não percebesse o que estava em jogo. Com a entrada na CEE, vieram os milhões. Fomos o país da União que mais dinheiro recebeu dos Fundos de Coesão nos últimos 25 anos. E o país que pior utilizou o dinheiro recebido, sobretudo nos anos em que Cavaco Silva foi primeiro-ministro. Os milhões que deveriam ter modernizado Portugal, ter transformado a nossa economia, desapareceram na sarjeta. Em vez da A25, tivemos direito ao IP5 e ao seu cortejo de mortes.
Cavaco, daqui a duzentos anos, se for recordado pela história, poderá sê-lo por ter desperdiçado a herança de Soares. E por nada mais de que alguém se possa orgulhar.
Sugestões (na semana passada não cumpri a promessa)
Um livro: Novas Inquirições, Jorge Luís Borges. Merecia mais o Nobel do que Saramago (apesar de O Ano da Morte de Ricardo Reis ou de Ensaio sobre a Cegueira) e mostrou, com este livro, que a religião, a literatura, a filosofia são prestígios vãos da molécula que, nos nossos cérebros, é responsável pelo nosso entendimento do mundo.
Uma palavra: Prestígio – ilusão dos sentidos provocada por artes mágicas (cfr, prestidigitador, ver dicionários).
Um sítio: Teatro Municipal da Guarda, o lugar em que assisti ao extraordinário (perfeito) concerto de Amâncio Prada do último sábado.
Um blogue: http://estadocivil.blogspot.com/
Por: António Ferreira