Veio de longe com vontade de mudar o simbolismo da Igreja. Escolheu o nome de Francisco porque quer viver com simplicidade e defende uma Igreja próxima dos mais desprotegidos. Dez traços que marcam o primeiro ano do seu Pontificado.
Francisco, o Papa que veio de longe, de outro continente e hemisfério, elegeu para destino da sua primeira viagem apostólica como Chefe da Igreja, a ilha mediterrânica de Lampedusa, ponto de passagem de milhares de imigrantes que tentam chegar à Europa, e cemitério de muitos outros que nunca chegam.
A 8 de julho de 2013, quatro meses depois de ser eleito Papa, Francisco quis homenagear os imigrantes desprotegidos que buscam a esperança de uma vida melhor. Quis “chorar os mortos” que ninguém chora, os que são vítimas dos naufrágios das embarcações onde viajam desde o Médio Oriente ou Norte de África.
Esta primeira viagem apostólica é um dos dez momentos ou atitudes que simbolizam o primeiro aniversário do pontificado do argentino, filho de imigrantes italianos, eleito Papa aos 76 anos, a 13 de março de 2013, na capital do país que os seus pais deixaram noutro século em busca de um mundo novo e melhor vida.
O dom do discurso claro, próximo de todas as ‘fés’
Afável, apreciador dos pequenos prazeres da vida como andar de bicicleta e ir ao futebol, começou por dizer “buona sera” [boa noite] ao mundo, quando assomou à janela da Basília de São Pedro, depois de ter sido eleito Papa, à quinta votação, pelo conclave de 115 cardeais que se reunira na véspera para decidir o sucessor de Bento XVI.
Demonstrou, nos últimos 365 dias, por gestos, palavras, doutrina e atitudes que quer tentar construir uma Igreja que saia dos ‘muros’ do Vaticano, dos templos e do discurso de um grupo fechado. O Papa “é um homem normal”, disse Francisco no passado dia 5, na sua primeira entrevista a um grande jornal generalista, o “Corriere della Sera”.
Um homem normal, que um dia depois de ser eleito Papa disse na sua primeira missa – com palavras transparentes e diretas – que a Igreja não se pode comportar como uma ONG “caridosa”. E a verdade, é que só um homem que “gosta de estar com as pessoas” e acredita na construção de uma Igreja mais dialogante com outras doutrinas e relações com a Fé, seria capaz de lavar os pés a uma reclusa muçulmana, como fez Francisco na Quinta-feira Santa de 2013.
Doutrina da simplicidade, austeridade no traje
Escolheu o nome de Francisco, em homenagem à simplicidade pregada e praticada pelo fundador da Ordem Franciscana, para que desde o início ficasse claro que pretendia uma Igreja mais próxima dos pobres, dos que sofrem e dos desprotegidos.
Sóbrio no trajar, recusou o ouro no anel papal, e optou pelos paramentos litúrgicos brancos abandonando a púrpura cardinalícia dos seus antecessores, bem como os tradicionais sapatos vermelhos que Bento XVI costumava usar.
Recusou morar no apartamento papal, optando por viver na Casa de Santa Marta, no quarto 201. E fez questão de pagar do seu bolso o hotel onde esteve instalado em Roma antes de ser eleito Papa.
Exortação apostólica contra a exclusão social
A 26 de novembro de 2013, na sua primeira Exortação Apostólica, Francisco convidou “todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar”.
Lembrou que o “grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres individuais de consciência isolada”.
Neste longo texto onde defende uma nova evangelização para a transmissão da Fé, Francisco reafirma a importância da inclusão social dos pobres para promover a paz e o diálogo social.
Afirma que um dos maiores desafios do mundo atual é a recusa firme de um modelo económico que exclui os mais fracos e promove a desigualdade social: “Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco”.
Lei para combater a lavagem de dinheiro
A 8 de agosto do ano passado, em plenas férias de verão, Francisco decidiu ‘abanar’ a fiscalização das atividades financeiras do Vaticano. Emitiu um decreto através do qual reforçou os poderes da Autoridade de Informação Financeira (AIF), criada por Bento XVI em 2010, para controlar e tutelar as actividades do Banco do Vaticano.
De acordo com o porta-voz do Vaticano, a decisão vai ao encontro de propostas feitas pelo Moneyval, o comité de peritos no combate ao branqueamento de capitais do Conselho da Europa.
Este segundo decreto do Papa Francisco diz que todos os dicastérios da Cúria, entidades dependentes da Santa Sé e organizações sem fins lucrativos com sede no Vaticano, ficam obrigadas a cumprir as leis adoptadas por aquele Estado sobre lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.
Antes das férias de verão, Francisco nomeou uma comissão especial de investigação, formada por cinco especialistas, com o dever de informar diretamente o pontífice sobre as atividades do banco do Vaticano.
Família, aborto e novas famílias
Em janeiro deste ano, Francisco condenou o aborto, que acusa de ser uma manifestação da “cultura do descartável”. Apesar da posição sobre este tema continuar inflexível, de não haver sinais de abertura à ordenação das mulheres, surgem alguns sinais de mudança no discurso. Na entrevista dada na semana passada ao jornal italiano “Corriere della Sera”, Francisco diz que “é preciso discutir a família, que atravessa uma crise muito séria”.
Depois de há alguns meses atrás ter dito que a culpa dos jovens não se casarem era das mães que insistiam em lhes engomar as camisas, Francisco alerta para o cada vez mais tardio casamento das novas gerações: “Os jovens casam-se pouco”.
O divórcio não ficou de fora das preocupações manifestadas pelo Papa nesta entrevista: “Há muitas famílias separadas, que falharam o projeto de vida em comum. Os filhos sofrem muito. Nós devemos dar uma resposta”.
“Compreensão” é o conceito escolhido para estabelcer pontes com as novas exigências e questões que a família hoje coloca. Sem se afastar dos princípios teológicos e doutrinários, o projeto de documento de trabalho para o Sínodo do próximo mês de outubro, dedicado às famílias atuais, terá de refletir necessariamente as respostas ao questionário de 39 perguntas sobre a família, enviado pelo Papa à comunidade católica.
Estrela nos media e no twitter
Neste inverno, três revistas americanas de relevo à sua maneira, escolheram a figura e a imagem do Papa Francisco para a capa. Que significa esta opção num país onde 52 % da população é protestante os católicos surgem em segundo lugar com 24%?
Para a “Time”, que em dezembro escolheu Francisco como ‘Pessoa do ano 2013’, “o que torna este Papa tão importante é a rapidez com que cativou milhões que tinham desistido de ter esperança na Igreja. […] Em escassos meses, Francisco elevou a missão de reconfortar da Igreja – a missão de servir e confortar os que mais precisam – acima da doutrina política que fora tão importante para os seus antecessores”.
Primeiro cardeal não-europeu a ser líder da igreja católica em cerca de 1300 anos, introduziu uma dinâmica de mudança no interior da instituição e na sua relação com os fiéis. Mais importante, foi capaz de transmitir uma sensação de transformação ao mundo não católico. “Em nove meses, soube colocar-se no centro das discussões essenciais do nosso tempo: a riqueza e a pobreza, a equidade e a justiça, a transparência, a economia, o papel da mulher, a natureza do casamento, as tentações do poder”, justificou a directora da Time, Nancy Gibbs.
Apesar do Papa se opôr ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a “The Advocate”, a mais antiga publicação gay dos EUA, também escolheu o Papa Francisco como personalidade do ano 2013. Na capa, na face de Francisco aparece a expressão ‘NO H8’ (não ao ódio, em tradução livre), numa alusão à mudança de mentalidade que o novo Papa pode ter ajudado a desencadear no interior da Igreja Católica.
Por último, em janeiro deste ano, a “Rolling Stone”, fez capa com um Papa pela primeira vez. Mark Binelli, o jornalista destacado pela revista para fazer a reportagem, diz que Francisco triplicou o número de participantes que, todas as sextas-feiras, chegam de todo o Mundo à Praça de São Pedro, em Roma, para a audiência semanal. É uma celebridade “uma figura com estilo, no seu sobretudo, sotaina e cachecol brancos, impecavelmente talhados”.
Francisco foi capa de jornais do mundo inteiro, abertura de telejornais, um fenómeno nos países fora da europa da diáspora católica, onde o número de crentes é maior e pode crescer. Os 12 milhões de seguidores que tem nas suas nove contas @Pontifex em várias línguas são a prova do seu sucesso nesta rede social – inaugurada pelo seu antecessor – desde que enviou o primeiro twitt aos fiés a 17 de março do ano passado. Claudio Celli, presidente do Conselho Pontifício para a Comunicação Social, disse recentemente que os twitts de Francisco chegam a 60 milhões de pessoas.
Jorge Bergoglio tinha uma conta no Facebook. Francisco tem dezenas de páginas, uma delas com 1,1 milhões de likes, mas nenhuma delas é oficial. O Vaticano prevê criar uma página a médio prazo, mas não a considera uma prioridade.
Brasil, a primeira viagem internacional
Uma das frases proferidas por Francisco durante a sua viagem ao Brasil, em julho do ano passado, para assistir à 28ª edição das Jornadas Mundiais da Juventude, no Rio de Janeiro, foi “se uma pessoa é gay e procura Deus de boa vontade, quem sou eu para a julgar”? O Vaticano ressalvou que as palavras do Papa não se traduziam numa mudança dos ensinamentos da Igreja: as tendências homossexuais não são pecado, apenas os atos o são.
Francisco negligenciou as medidas de segurança à chegada ao Rio, quis estar perto de todos, andou de carro com a janela aberta, foi cercado diversas vezes por fieis, que os seguranças tiveram dificuldade em lidar. O papamóvel ficou bloqueado num engarrafamento no centro do Rio.
Ao lado da presidente Dilma Rousseff, falou em português e disse que “Cristo bota fé nos jovens”.
Visitou a favela da Varginha, falou contra a legalização do consumo de drogas, dizendo que é preciso enfrentar os problemas que estão na base da sua utilização, educando os jovens com os valores da vida comum, e rezou pelas vítimas do acidente de comboio na Galiza.
Na praia de Copacabana, juntou-se aos jovens que motivaram a escolha do Brasil como destino da sua primeira viagem apostólica internacional e fez um discurso memorável. De improviso.
Segundo a agência Ecclesia “mais de três milhões de peregrinos estiveram na Praia de Copacabana para a chamada ‘missa do envio’, que começou às 10h00 (mais quatro em Lisboa)”. No final da missa, o Papa abençoou e entregou a dez jovens uma pequena imagem do Cristo Redentor, símbolo do Rio de Janeiro, como sinal de envio missionário pelos cinco continentes.
A escolha dos Cardeais
Em janeiro deste ano, o Papa nomeou 19 novos cardeais de várias partes do mundo. Dezasseis deles são “cardeais eleitores” com idades entre os 55 e os 74 anos, aptos a participar num próximo conclave para eleger um Papa.
Metade deles são não-europeus, indicando a importância que Francisco atribui aos países em desenvolvimento. Vêm de Itália, Alemanha, Grã-Bretanha, Nicarágua, Canadá, Costa do Marfim, Brasil, Argentina, Coreia do Sul, Chile, Burkina Faso, Filipinas e Haiti.
Da América Latina foram escolhidos o arcebispo Aurelio Poli, 66, o sucessor de Francisco na capital argentina, e os arcebispos de Manágua, na Nicarágua, do Rio de Janeiro, e de Santiago, no Chile. Dois são da África –os arcebispos de Ouagadougou, em Burkina Faso, e Abidjan, na Costa do Marfim.
Da Ásia, os arcebispos de Seul, na Coreia do Sul, e Cotabato, nas Filipinas. O arcebispo Chibly Langlois, 55 anos, é do Haiti, um dos países mais pobres do mundo.
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