Por motivos diversos, alguns alheios à minha vontade, visitei nas últimas semanas várias lojas de roupa, comummente designada por vestuário em contextos eruditos. Tal como Wordsworth fez poesia sobre narcisos e não sobre cravos, alguma condição social não permite que se frequentem “lojas de roupa”, apenas que se visitem “espaços de vestuário”. Foi nestes espaços que descobri uma nova tendência na moda portuguesa: a singularização. Não a singularidade, porque a roupa tende a ser igual em todas as lojas. Aliás, espaços comerciais, peço desculpa pelo plebeísmo. A singularização é o fenómeno que transforma tudo o que existe em substantivos singulares. “Que experimentar esta calça?”, foi-me perguntado. Não, eu gostava de experimentar o par. “Com esta calça um sapato ficava melhor que a sapatilha”, ouvi. E se for um sapato no pé esquerdo e uma sapatilha no pé direito, pode ser? Ainda não estou pronto para abandonar as All Stars, mas posso aceitar esta solução de compromisso.
No Ciberdúvidas da Língua Portuguesa escreve-se que podem aceitar-se as duas formas, plural e singular e a Wikipédia esclarece que “calça” é a versão utilizada no Brasil. Mas o Brasil é o país do mundo com mais implantes de silicone, o que torna a distinção entre singular e plural bastante irrelevante. A propósito, note-se como cornos e mamas são sempre referidos não só no plural como muitas vezes com o auxílio da expressão “par de”, muito embora, a não ser em casos de doença, uns e outras venham precisamente sempre aos pares.
Já o “Dicionário da Língua Portuguesa” da Porto Editora não está com rodeios e mostra claramente a distinção. “Calça: s.f., atilho que se coloca nas pernas de algumas aves domésticas, para distinguir das outras” e “Calças: s.f., peça de roupa que veste as ancas e, separadamente, cada uma das pernas”. Da próxima vez que uma assistente comercial – aqui também se usam eufemismos – disser “fica-lhe bem esta calça” vou pensar que me está a chamar galinha.
Estranhamente, Rodrigo de Sá Nogueira, no seu “Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem”, não aborda esta questão sociolinguística. Será a distinção entre calça e calças uma questão de classe social? Ou apenas um jargão profissional? Pode ser uma maneira de distinguir os vendedores dos clientes, da mesma forma que os mecânicos falam de peças de automóveis das quais os engenheiros que inventam os carros nunca ouviram falar, também quem está a atender em lojas de roupa singulariza gramaticalmente as peças de roupa como uma afirmação de especialista. Se usam o singular é porque percebem mesmo do que estão a falar.
Na verdade, é uma técnica similar àquela utilizada pelos taxistas no seu discurso sociopolítico elaborado. “O imigrante não gosta de trabalhar. O preto vem para Portugal e só quer é mandriar. O muçulmano e o judeu é tudo a mesma laia, só vê dinheiro”. Argumentos singularizados acabam por ser persuasivos. Eu não acredito na preguiça como indicador de pertença étnica, mas consigo imaginar pessoas preguiçosas, sejam elas nascidas no Congo, na Moldávia ou em Coimbra (estas últimas não só imagino como conheço). A singularização impede a contestação: “Eu não disse que eram todos, pois não?” É verdade, não disse.
É como em “A calça fica-lhe bem”. Pois, mas aqui atrás ficam esquisitas. Lá está, a senhora não disse que eram as calças que ficavam bem. O que ficava bem era “a calça”. O problema é que eu não sou magro nem perneta e tinha mesmo de comprar o par de calças. A outra metade do par, afinal, é que já não ficava assim tão bem.
Por: Nuno Amaral Jerónimo