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O meu professor de matemática

Sinais do Tempo

Nunca fui um “barra” a matemática. O Dr. Pina foi meu professor no então Curso Geral. Durante três anos aturou as nossas tropelias e ia-se vingando, com naturalidade, nas avaliações. Notava-se que o momento de entregar os “pontos”, cheios de traços e riscos vermelhos, lhe dava um imenso prazer, era a hora da vingança. A pronúncia não escondia as origens beirãs e tratava-nos sempre por «menino», mesmo quando estava zangado. Sempre o conheci sem um único cabelo, a cabeça era uma autêntica bola de bilhar, muito luzidia. Os óculos tinham uns aros metálicos e suspendiam-se num nariz afilado e avantajado. O olhar era vivo e atento. Nada lhe passava despercebido, mesmo quando escrevia no quadro ou apagava as mensagens anónimas deixadas no intervalo por algum herói. O chapéu e a velha pasta de pele preta acompanhavam-no para todo o lado. A gabardina cinzenta escura era larga e curta e, para nosso júbilo, sempre se deu mal com o pó de giz. Os sapatos tinham pelo menos dois números acima e a ponta elevava-se do chão mais de dois centímetros, autêntica quilha de barco a fazer-se ao mar, tendo elegido como inimigo o degrau do estrado. Valia-lhe uma cana-da-índia comprida em que apoiava o corpo enquanto por arte e magia tentava transformar o Teorema de Pitágoras em algo perceptível. A cana não servia apenas de suporte àquele corpo pesado, servia principalmente para manter os quarenta “pestinhas” na ordem, assobiando perto das nossas orelhas, autêntico chicote nas mãos de um domador de feras.

Não me recordo de que alguma vez tenha faltado. Chegava pontualmente ao liceu num velho Opel Rekord PII de cor escura e tejadilho azul, contrastando com as tampas cromadas das jantes e pneus pintados de branco. A acompanhá-lo, a esposa, professora de germânicas, fatos de cores vivas e garridas, mais baixa e de cabelo pintado de amarelo, carregado de laca, que nem um furacão faria oscilar. Às vezes no lugar de trás sentava-se uma senhora de idade que por ali ficava todo o dia, impávida e serena, seria presumivelmente a mãe de um deles, mas o mistério nunca foi integralmente resolvido. A senhora deixou de aparecer e as gravatas do Dr. Pina passaram a ser pretas, estranhamento o carro passou a ser um Opel Rekord A, de cor clara.

A criatividade própria dos adolescentes fazia correr diversas histórias e anedotas, em que eles eram os actores principais, mas só algumas seriam verdade.

Nos dias mais frios abria a tampa do motor e, para o proteger, colocava uma manta. Até que, um dia, se esqueceu de a tirar. Após alguns metros, percorridos aos soluços, o automóvel já estava envolvido numa mistura de fumo e de pó. Depois a nossa imaginação contava o resto, tornando tão real que até parecia que tudo tinha acontecido. Chegávamos a especular sobre o dia a dia deste casal e nem as actividades íntimas escapavam.

Além de professor (acima da média) era director de turma. Tinha um gabinete alcatifado ao lado da nossa sala de aulas. Quando faltava um professor, no momento em que o toque estridente da campainha se misturava com a nossa algazarra, a porta do gabinete abria-se e o Dr. Pina mandava às malvas o nosso jogo de futebol e aproveitava para rever a matéria das tangentes e dos senos nas nossas orelhas. Resignados e a rogarmos uma variedade de pragas, lá íamos entrando na sala, deixando os olhos transparecer um misto de tristeza e de raiva. Numa dessas aulas começou a cheirar a queimado, mas os alertas só serviam para enfurecer a vara, até que o cheiro deu lugar ao fumo. O gabinete contíguo estava a arder. Desta vez os “pestinhas” do costume estavam ilibados, talvez uma das pragas tenha dado resultado. Afinal, com a pressa de impedir o nosso momento de prazer, o Dr. Pina tinha atropelado o radiador incandescente, que por sua vez caiu em cima de um monte de papéis e da alcatifa. O incêndio foi prontamente extinto e a aula continuou, com o frio de Janeiro a entrar pelas janelas de par em par. Estava-lhe no sangue essa vontade louca de ensinar matemática. As aulas de substituição eram então uma realidade. Obrigado Dr. Pina.

Por: João Santiago Correia

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