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O Jogo da Justiça

Quebra-Cabeças

Em princípio, mas apenas em princípio, ou então no sentido de “tendencialmente”, os processos judiciais servem para se fazer justiça, se alcançar o que é justo, sendo “justo” aquilo que a própria sociedade como tal definiu previamente. Em todos os países existem regras processuais, formas de se chegar ao veredicto mais justo. Regras do jogo. Em geral, essas regras têm de ver com a forma como se apresenta o caso ao tribunal, como são produzidas as provas, como é proferida a decisão, como a decisão pode ser revista e modificada por um tribunal superior.

É claro que quanto mais complexas forem as sociedades e os direitos, quanto mais garantias tiverem os indivíduos, mais complexos serão os procedimentos para se chegar a uma decisão justa. O problema é que se tornou cada vez mais evidente que a importância dos procedimentos acabou por suplantar os direitos que deveria acautelar. O direito abafou a justiça e tudo se transformou num grande jogo cheio de enigmas, alçapões, labirintos, obscuridades. É por isso que a maior parte dos processos acaba por se decidir por motivos formais. Não se tem dito é que é necessário manter assim o sistema: este não tem meios para decidir “normalmente” o mais de um milhão de processos que todos os anos o inundam e o facto de muitos desses processos acabarem por motivos formais, por isso sem muito trabalho para os tribunais, acaba por aliviar o sistema e mantê-lo viável.

Entretanto, no caso “Casa Pia”, de repente, em lugar de se discutir se sim ou não os arguidos são inocentes, passaram a discutir-se incidentes processuais. A decisão do Juiz de Instrução em acarear (colocar cara-a-cara) arguidos e testemunhas ou vítimas e tomar-lhes declarações para memória futura seria sempre razoável: que melhor forma há de apontar um culpado que não pela própria vítima? Seja agora, seja em sede de julgamento, essa confrontação terá em princípio de ser feita. Mas não, de repente parece que isso não pode ser – o Ministério Público acha que a acareação poderá provocar danos às vítimas; a defesa entende que ela não passa de uma antecipação do julgamento para a qual o juiz de instrução não tem legitimidade e, quando o juiz acolhe em parte a tese do Ministério Público e se decide pela videoconferência, então é porque perdeu a necessária isenção processual e precisa de ser afastado.

Até pode ser verdade, mas é incontornável o facto de a opinião pública estar contaminada com um “pré-juízo” desfavorável em relação à Justiça e aos seus modos. Muitas das pessoas que têm ouvido e lido notícias nos últimos dias pensam que tudo isto não passa de um jogo e que a defesa está é a tentar obter um juiz que lhes convenha mais, ou então que tenta adiar o momento, talvez inevitável, em que um miúdo se levante, aponte o dedo, e diga: “sim, foi este”.

Por: António Ferreira

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