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O “Jardim dos Misarelas” no sopé da Gardunha

Tradição das flores de papel mantém-se nos descendentes de um homem daquela aldeia do concelho da Guarda que foi para a Soalheira há cinco gerações

Sabe-se que, há muito tempo, um homem – Tomás – saiu da Misarela, no concelho da Guarda, e rumou à Soalheira, no Fundão. «Deve ter sido para se governarem melhor, mas não se sabe ao certo», admite uma bisneta, Leonor Ferreira. Na Soalheira já há trinetos de Tomás. Ali casou e governou a família. As datas, as razões e outros pormenores da viagem continuam por explicar. Na Beira Baixa, Tomás deixou a prole, a alcunha da família – os seus descendentes ainda hoje são chamados de “misarelas” – e uma tradição, a da venda de flores de papel nas romarias da região, que ainda hoje se faz.

No Castelejo, também no concelho do Fundão, as flores são conhecidas por “Flores de Santa Luzia”. «No ano passado estive lá e as pessoas diziam que eram as flores de Santa Luzia, e eu ficava um bocadinho danada. Estou sempre a dizer que as flores saíram da Soalheira e que se vendiam noutros lados, mas é ali que aquelas pessoas as vêem», justifica Leonor Ferreira. A bisneta lembra-se de ir com o avô não só à Santa Luzia (no Castelejo), mas também à Senhora da Póvoa, à Senhora dos Remédios ou à Senhora do Almortão. Nessa altura, o seu interesse pelas flores de papel era pouco: «A mim não me diziam nada, mas era daí que eles se governavam», recorda. Nesses tempos também as noivas as usavam, sendo ainda depositadas nas campas das crianças. Hoje, só os ranchos e uma ou outra exposição reclamam pelas “flores dos misarelas”. Flores que, até 26 de Outubro, fazem o “Jardim dos Misarelas – na Moagem, Cidade do Engenho e das Artes, no Fundão.

«Antigamente, os romeiros compravam as flores e punham no chapéu. Outros levavam como recordação para casa. Ainda hoje quem tem uma adega à antiga na zona do Fundão também gosta de as ter por lá, mas só o pessoal mais velho», adianta a descendente. Tal como Leonor, também o seu pai – João Domingos Silva, mas sempre “o misarela” – vivia desinteressado pelas flores. Só um tio da artesã continuou a fazê-las e foi mantendo a tradição da família, que esteve para acabar. A «arte», com insiste em chamar-lhe, chegou às mãos de Leonor Ferreira pela improvável vontade do Centro de Emprego e Formação Profissional, que não quis deixar morrer estas flores de papel. «Eu via o meu avô fazer e não me interessava, mas tudo mudou depois de saber do curso, até porque a tradição é da minha família. Fomos cinco mulheres e, hoje, só eu continuo», afirma. Estas flores são feitas à mão, com papel de seda, de alumínio e penas pintadas. Cada uma pode ter dezenas de arames, que exigem paciência e cuidado na colocação.

A “misarela”, como ainda é conhecida, fá-las em todas as cores, mas «a tradição é serem verdes e é dessas que as pessoas gostam», garante Leonor Ferreira. Gostam, mas cada vez menos. «O pessoal mais novo não liga e esta arte terá tendência a desaparecer», acrescenta. Há 15 anos que mantém a tradição familiar, só que, como muito do artesanato, as “flores dos misarelas” já não têm o interesse de outrora, nem dão o sustento conseguido pelo bisavô. Apesar disso, a filha de Leonor também está a aprender a fazer as flores para «uma ou outra encomenda». A tradição está então por um fio, tal como a meada genealógica. Há cerca de seis anos “os misarelas” regressaram à terra natal do bisavô. «O autocarro ia cheio, cerca de 75 pessoas», lembra, com satisfação, Leonor Ferreira. Na Misarela procuraram familiares, mas não encontraram parentes, memórias ou mesmo flores. «Um primo meu até foi ao Arquivo Distrital e às Finanças, mas ficámos a saber o mesmo», lamenta.

Igor de Sousa Costa

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