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O fim do reinado?

Jogo de Sombras

1. Esteja quem estiver no poder, a partidarização ou a corporativização das opiniões é uma fatalidade. E existe sempre, da parte de quem manda ou anseia mandar, uma desconfiança instintiva em relação à natureza genuína do que cada um pensa ou diz. Por outras palavras: é problemático ter a coragem de pensar pela própria cabeça ou expressar ideias sem constrangimentos nem dependências. Ou dito com mais crueza: pode duvidar-se que a sociedade em que vivemos seja verdadeiramente uma democracia, no que diz respeito à expressão dos pontos de vista. É que a vivência democrática começa, precisamente, quando um cidadão ousa pensar, reflectir e exprimir as suas convicções sem receio de que elas possam colidir com as do poder instituído. E termina quando o mesmo cidadão se sente compelido a arregimentar-se – até no pensamento – na lógica das conveniências vigentes. Os partidos, como quaisquer grupos de interesses ou autoridades institucionais, vivem deste pressuposto. As concepções individuais limitam-se a exprimir nuances particulares dentro de uma opinião que não tem correntes – está, isso sim, acorrentada.

2. O presidente da concelhia da Guarda do PSD não tem de quem se queixar senão de si próprio. Mal ocupou o lugar, há menos de dois anos, declarou como finalidade sacrossanta a eleição de Ana Manso para presidente da Câmara. E fez-lhe, nos últimos meses, alguns jeitos: uma conferência de imprensa sobre a qualidade da água corrente para tentar desviar as atenções sobre o fraco desempenho da deputada na defesa do PIDDAC para o distrito; um desafio público, com uma desproporcionada antecedência – na festa de Natal do partido – para ser candidata do PSD às próximas Autárquicas. Percebe-se agora que o Rui Quinaz que se deu a este e a outros fretes e o Rui Quinaz que participou, recentemente, em furtivos jantares com históricos militantes para «analisar a situação partidária» eram a mesma pessoa – mas não representavam o mesmo pensamento. Resta saber qual destas personalidades é que é a genuína. Admito que seja a do Rui Quinaz rebelde. E que tenha vindo ao de cima pela junção de três sentimentos: de decepção pelo mau trabalho da oposição na Câmara da Guarda; de desilusão por nunca ter sido acolhido no thinking team de Ana Manso, em que pontuam o deputado Fernando Lopes e o adjunto do governador civil, António Mendes (o que é sintomático do nível ambicionado); e de regozijo por pensar que poderia ficar ligado ao retorno de velhas figuras do partido e, desta forma, à união da família social-democrata e à diversidade da discussão política interna. Foi esta inocência que o tramou.

3. Rui Quinaz é, provavelmente, quem menos tem a perder. Em rigor não precisa do partido para nada e até já pôde dar-se ao luxo, na Segunda-feira passada, de ter virado costas a uma enfurecida Ana Manso, depois de dito o que pensava ao tal thinking team. Mas há quem esteja a sentir a vida andar para trás, por não querer assinar os pedidos de demissão da comissão política concelhia que legitimem as eleições marcadas para o próximo mês com base numa falta de quórum que, pelos vistos, não coincide legalmente com o número de cartas efectivamente assinadas. Um membro que se mantém fiel a Quinaz terá sido intimidado por um administrador da empresa onde trabalha. A outro tê-lo-ão ameaçado por coacção a um familiar, funcionário público. Todos estão presos a uma nomeação, a uma colocação, a um favor, a uma ocultação. E sujeitos à limitação dos movimentos e à captura do pensamento. Couto Paula e Carlos Gonçalves, se pudessem, ter-se-iam esquivado ao porta-a-porta, num domingo de manhã, para recolher assinaturas e deixar evasivas. Só eles saberão a que preço foram forçados a fazê-lo.

4. E tudo isto porquê? Porque o núcleo duro do PSD do tempo do cavaquismo está a movimentar-se para voltar ao poder, planeando avançar com uma lista para a concelhia que, a ganhar, indicará outro candidato à Câmara. Como passaram dez anos, tentaram a aproximação a alguns dirigentes no activo. Com um pressuposto que seria do interesse de todos: a saída de Maria do Carmo Borges de cena e o previsível esfrangalhamento do PS na busca de um sucessor abrirão ao PSD a oportunidade esperada para conquistar a autarquia. Bastará encontrar o candidato certo. A velha guarda do partido prefere alguém das próprias fileiras, como José Gomes. Mas não se opõe a que um independente – Crespo de Carvalho, que tem sido visto como o único vereador da oposição – avance à cabeça de uma lista de consenso.

5. Ao sentir o terreno fugir-lhe dos pés, o que fez Ana Manso? Tentou que fossem marcadas eleições para a concelhia num prazo tão curto que só desse para organizar a lista da situação (António Mendes ou Couto Paula serão prováveis candidatos; Carlos Gonçalves não tem a confiança plena da líder distrital desde que se bateu a um lugar na lista para as legislativas). E em vez de uma explicação cabal sobre toda esta embrulhada deu uma conferência de imprensa de «balanço dos dois anos de mandato na Câmara», onde quem tinha mais para dizer não foi convocado. Para que constasse que Crespo de Carvalho acabara de entrar para o Index.

6. Para se perceber o presente é preciso conhecer a História. A última «dama de ferro» do PSD da Guarda também caiu assim. Mas teve um reinado de quinze anos.

Por: Rui Isidro

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