Por altura da Quaresma, vários homens percorriam as ruas do Marmeleiro, na Guarda, para cantarem os “martírios”. Hoje, só José Marques Escada e Jerónimo Santos mantêm viva essa tradição.
«Qualquer um pode aprender mas não querem, o que se pode fazer? E a gente não se pode matar, fazemos o que podemos». José Marques Escada, de 83 anos, é o rosto envelhecido de uma tradição condenada a acabar no concelho da Guarda. É quase por teimosia que continua a percorrer, durante a Quaresma, as ruas da aldeia do Marmeleiro e os “martírios” na companhia do amigo Jerónimo Santos, de 76 anos.
A luta é desigual: são os dois contra o tempo. É preciso gente nova, mas mais ninguém se mostra interessado em entoar os 60 “martírios”, que recordam os últimos momentos de Jesus Cristo até ao calvário, e a resposta “Tende misericórdia de nós”, que é sempre igual. José Escada e Jerónimo Santos não querem que a tradição chegue ao fim, mas são impotentes perante o rumo há muito anunciado: «Ainda comecei a ensinar os “martírios”, mas depois deixaram, pois a gente nova não quer saber destas coisas», lamenta José Escada, que sempre gostou de cantar e de contar «umas histórias». Até sexta-feira, já tinham cantado os “martírios” duas vezes este ano e contavam fazê-lo pelo menos mais uma vez. «Começamos, pelas 22 horas, às portas da igreja do Marmeleiro, e vamos até à Capela de S. Sebastião; voltamos atrás e damos a volta ao povo até terminar novamente na igreja», um percurso que demora cerca de uma hora, adianta o morador.
Quando era jovem gostava de cantar, mesmo quando ia com o rebanho, tendo-se habituado desde cedo a cantar os “martírios”, que sabe de cor: «Há uns que são maiores do que outros, mas quanto maiores forem melhor os canto – e o meu colega igual», garante José Escada. As pernas é que já não ajudam, mas a voz, ainda que mais cansada, mantém a dedicação de outros tempos. «Aí pelos balcões fica tudo cheio de gente a ouvir-nos e depois dizem-nos “ontem é que cantastes bem” ou “ontem foi assim”», diz o homem, acrescentando que «há pessoas que até saem das janelas e vêm para ao pé de nós». Antes os “martírios” repetiam-se várias noites e a várias vozes durante o período da Quaresma, mas agora é «quando apetece», admite. «Antigamente era colossal, uma coisa formidável, porque toda a gente gostava de ouvir, apuravam-se no canto e em aguentar a tradição», recorda José Escada.
«Deus me conserve a ideia e que a tradição não acabe enquanto for vivo, mas até depois de morrer gostava que a seguissem», deseja o intérprete. Jerónimo Santos escuta com cumplicidade o amigo, que há largos anos o convence a perpetuarem a tradição por mais um ano. «Já canto há uma temporada, mas só aqui com o meu colega», sublinha, reiterando que no Marmeleiro «ninguém quer cantar e também há pessoas que não conseguem porque não têm garganta». É só o companheiro do canto dos “martírios” sussurrar o próximo verso e Jerónimo Santos acompanha-o de seguida a plenos pulmões. Continuar «é uma força de vontade», considera o residente, confessando ter pena de não ver mais gente interessar-se por uma tradição mais velha do que ele. Para além dos “martírios”, a dupla acompanha as senhoras da aldeia na “Encomendação das Almas” e canta semanalmente – contando também histórias e anedotas – com uma animadora que se desloca ao Centro Cultural e Social do Marmeleiro.
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Sara Quelhas