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O fetiche do degrau

Um dia destes, lembrei-me de realizar uma simples abordagem a algumas das inúmeras imobiliárias que aparecem um pouco em cada canto da cidade. A minha questão era muito simples: “Têm algum escritório para alugar, onde possa entrar uma pessoa em cadeira de rodas?”. A resposta foi no geral bem curta: “Não” ou “Nada”. Mas houve também quem se lembrasse que tinha um onde havia um elevador. Quando lá chegámos, tivemos antes que transpor uma série de degraus, já que o elevador ficava a meio patamar. Depois, a cabine electro-mecanizada que nos resolveria o problema, era uma dessas dita para quatro pessoas, onde uma em cadeira de rodas não consegue entrar!

Parei. Talvez até pudesse ter encontrado algum por aí perdido, mas simplesmente, cansei-me de procurar algo para o qual poucos percebem a falta que faz. Sentei-me então num degrau de entrada de uma loja. Olhei para ele e sorri. O meu assento improvisado, era um belo pedaço de granito bem desenhado, nitidamente um toque de estilo, uma assinatura de artista, mas também um limitador ao acesso autónomo para alguns.

Confesso-me uma apreciadora destas subtilezas. A beleza das coisas simples toca-me. Percebo até o devaneio intelectual de um “criador” ao desenhar meticulosamente um degrau.

Vem-me á cabeça um desabafo de Michael Graves, um dos mais mediáticos arquitectos americanos, paralisado em 2003 devido a uma doença por determinar, que sentado na sua cadeira de rodas, admite ter arquitectado tudo mal, mesmo depois de ter sido um dos que mais influenciou os adeptos do efémero e fachadista “pós-modernismo” de finais do Séc. XX.

Na verdade, quando somos jovens, saudáveis e sem problemas, não só somos capazes de ultrapassar todos os obstáculos, como chegamos a agradecer alguns pelo gozo que nos dá transpô-los.

Ao envelhecer, não somos capazes de admitir a natureza da nossa condição, presos que ficamos á nossa juventude. “quando tinha a tua idade, saltava os degraus 3 a 3… e agora… não são os degraus que estão mal mas sim eu que estou velho”.

Aqui está o verdadeiro paradigma: Se quando somos jovens e “perfeitos” conseguimos mais facilmente transpor obstáculos, então projectemos os espaços onde vivemos a pensar em quando formos velhos ou mais afastados dos ícones de perfeição.

Actualmente em Portugal, existem segundo as estatísticas, 905.488 pessoas com deficiência, o que representa uma taxa nacional de 9,16% da população.

As Nações Unidas prevêem que no ano 2050, em Portugal, 37% da população tenha 60 ou mais anos, tendo 27% deste grupo populacional mais de 80 anos.

Está na altura de sermos críticos em relação aos “degraus” que por capricho, por facilidade ou por incompetência, nos põem á frente.

Comecemos pelas escadinhas de entrada do nosso prédio…

Por: Carla Madeira

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