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O espectro do medo

A possibilidade do “Brexit” está sob o espectro do medo, que já enterrou tragicamente uma deputada trabalhista brilhante, Jo Cox, de quarenta e poucos anos. O nevoeiro sobre a Europa é desde há tanto tempo tão espesso que deixámos de perceber, nós europeus, quanta liberdade há numa fronteira aberta. Infelizmente, como, por medo, já não abrimos portas para deixar entrar não nos apercebemos de que estamos mesmo a pôr trancas às portas que nos deixariam sair. Hoje é um refugiado que não entra, amanhã é um português.

Estamos demasiado enfiados nas nossas vidas e políticas domésticas, aflitos e bem persuadidos de que esta nossa aflição tem causas muito prementes nos ditames que vêm ora de Bruxelas, ora de Berlim. E com toda a razão. A política do ditame europeu, a organização pouco democrática das instituições políticas europeias, as dualidades de critérios circunstanciais, tudo aponta para uma União Europeia que, mantendo muito de bom, incorporou nas suas práticas o paternalismo, a punição e a condescendência, no fundo uma União que não soube ultrapassar o preconceito das duas Europas em que uma é superior à outra, uma destinada a mandar e a outra a obedecer.

O europeísmo no Reino Unido é hoje muito frágil. Não tem melhor argumento do que o medo das consequências de se sair do barco europeu. Mas o argumento do medo é o pior. Apenas acrescenta razões a quem quer a saída e que, muito razoavelmente, contestará: se a dependência é desta ordem então não queremos esta dependência.

Jo Cox merece a tenacidade do europeísmo da solidariedade e da igualdade entre europeus e entre nações europeias. Mas depois deste assassinato, os debates em torno dos “exit” mudam de sentido. Pouco importa se a sua morte foi o resultado de algo mais do que a loucura de um homem. Doravante, a discussão passa a ser da ordem do irreversível, como a morte. Já não serão contas, de custos e benefícios, de vantagens e desvantagens, avaliações de impacto, sempre reajustáveis.

Ao medo só resta a oposição da coragem. Mas coragem para quê? Ou se revolucionam os pilares desta Europa junta, restaurando a generosidade de vistas para o futuro – com Estados-membros que se pautem não pelo oportunismo do mercado europeu ou dos fundos de apoio, mas pela convicção nos valores da inclusão, da diversidade e da solidariedade – ou coragem para quê? Sem projeto genuíno, a coragem não tem sentido.

O referendo deste fim-de-semana, apesar de assombrado por uma morte trágica, repõe a necessidade de mobilizar a vontade dos europeus. Não há projeto europeu genuíno se não for um projeto dos europeus. O que não se faz sem democracia, sem escolhas difíceis mas participadas por todos. Precisamente o que a Europa desta União nunca foi capaz de fazer, ela mesma vítima do medo de si própria. Eu desejo que os britânicos queiram continuar na UE e ajudem a transformá-la, mas para isso quero primeiro que os britânicos se possam perguntar se querem continuar. O mal desta Europa começou logo aqui: achar que quem questiona, quem referenda, quem quer legitimidade dos seus povos, não é europeísta. Pelo contrário.

Por: André Barata

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