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«O egoísmo, individualismo e clientelismo são os maiores inimigos da descentralização»

Miguel Relvas, secretário de Estado da Administração Local

P – Esta reforma é irreversível?

R – Não tenho dúvidas em afirmar que é imparável. Portugal precisa de organizar o seu território e, independentemente de quem for Governo no futuro, todos temos consciência de que os municípios têm que adquirir escala, dimensão, ganhar massa crítica e funcionar em rede. É uma reforma que nasce de baixo para cima e que me permite dizer que, se é verdade que a regionalização dividia os portugueses, é também verdade que a descentralização os une.

P – O que vai acontecer aos concelhos que não se agruparem em comunidades?

R – Não acredito que os autarcas corram o risco de não assumirem opções e de não se agruparem nas novas entidades. Quem ficar sozinho e isolado está condenado ao fracasso e pagará muito caro esta sua opção.

P – Contudo, tem havido grandes dificuldades em criar estas comunidades, nomeadamente na Beira Interior. Como explica esta situação?

R – As regiões mais ricas de Portugal já estão organizadas, porque quem é rico e desenvolvido associou-se para ser mais forte. Neste momento poderei dizer que cerca de 70 por cento da população já está organizada, o mais difícil está a acontecer no interior do país. Aqui, os autarcas têm que assumir que este modelo foi consolidado e construído para gerar uma alternativa para recuperar o atraso relativo que estes municípios têm em relação ao litoral. Para mim, os três maiores inimigos desta reforma são três valores mesquinhos muito fortes na nossa sociedade: o egoísmo, individualismo e o clientelismo. Temos que pôr de lado aquilo que nos divide e agregar o que nos dá dimensão. Se os municípios portugueses não adquirirem escala passarão por grandes dificuldades no próximo Quadro Comunitário de Apoio, que vai ter em atenção, como já anunciou o Primeiro Ministro, toda essa nova organização do território. As rivalidades e as tradições também existem no Minho, mas a verdade é que foram capazes de valorizar e acentuar o que os une e criar uma área metropolitana com 600 mil habitantes, a terceira região mais rica de Portugal. Coimbra, Viseu, Leiria ou Porto são outros bons exemplos a seguir.

P – Por que motivo são os autarcas a definir as comunidades a criar no âmbito desta reforma administrativa? Não será redutor?

R – Esta decisão é tomada pelos executivos camarários e aprovada pelas Assembleias Municipais, que são as “casas” da democracia local, onde estão representados o poder e a oposição, portanto, há uma representatividade objectiva. Um ministro ou um deputado têm mais legitimidade que o presidente de Câmara ou os elementos da Assembleia Municipal?

P – Não estamos perante uma regionalização encapotada?

R – Não. Estamos a falar de uma agregação de municípios e de um novo modelo de ocupação, gestão e planeamento do território.

P – Mas é um caminho para a regionalização?

R – Do futuro só Deus sabe.

P – Admite ou não eleições para as Juntas das futuras comunidades a médio prazo?

R – Não me choca. O que disse é que, no futuro, após a consolidação do processo, daqui a 5, 6 ou 7 anos, poderíamos pensar e evoluir para a eleição directa para dar legitimidade a estas novas entidades. A legitimidade nesta primeira fase é conferida pelos autarcas nos seus municípios. Este modelo funciona a dois tempos, pela delegação de competências que os municípios fazem nas novas entidades e pela contratualização com a administração central. Só que os municípios do litoral têm dimensão e são capazes de gerar receitas próprias, pelo que seria extraordinariamente injusto se não déssemos aos concelhos do interior as mesmas oportunidades que os do litoral. Não os podemos obrigar, compete-lhes decidir. No futuro vamos ter que idealizar projectos intermunicipais, pois não é mais possível cada um ter escolas de um milhão de contos, piscinas e cine-teatros, que depois abrem uma ou duas vezes por ano. Por outro lado, estou convicto que estas novas entidades serão a base dos futuros círculos eleitorais numa reforma do sistema político. Confesso que esperava mais dificuldades, mas estamos cá para as ultrapassar e para, no futuro, chamar a atenção daqueles que não foram capazes de acompanhar este processo.

P – Acredita nisso?

R – Não tenho dúvidas. Esse é o único caminho que temos pela frente porque se não queremos aumentar os impostos – e esse é um consenso nacional – vamos ter que ser racionais na gestão. Nos momentos difíceis, a primeira opção é cortar no investimento e não nas despesas correntes, por isso os municípios do interior têm que se agregar para poderem aceder a novos produtos financeiros ou a parcerias público-privadas às quais os grandes municípios têm acesso pois são capazes de gerar receitas próprias. É também verdade que o egoísmo e o individualismo já não têm mais razão de ser. Não podemos defender uma política de coesão na Europa quando não somos capazes de o fazer internamente. Também acho que as transferências do Orçamento de Estado para as autarquias deveria ser mais justa – e temos de caminhar nesse sentido em termos de discriminação positiva -, mas costumo responder aos autarcas que esse mesmo princípio também deve vigorar localmente, onde grande parte do investimento municipal é concentrado nas sedes e não nas freguesias rurais e menos populosas. Temos orgulho nos nossos autarcas, mas é altura de assumirmos que se fechou o ciclo infraestrutural e que doravante se coloca o desafio de um novo modelo de organização numa perspectiva de desenvolvimento social. E com estas novas entidades é possível gastar menos dinheiro com mais eficiência e melhor serviço. Esta reforma é gradual, acredito muito no princípio da medicação: um antibiótico de hora a hora mata, de oito em oito cura.

P – Como vai ser calculado o financiamento das futuras comunidades?

R – Terá a ver com a nova lei do financiamento local, a transferência de competências da administração central com os respectivos meios e também com a transferência de verbas dos orçamentos municipais. Estes não são tão exíguos quanto isso, pois conheço os orçamentos e as dívidas dos municípios e, portanto, esse não é um argumento crucial.

P – Como pensa o Governo assegurar uma retaguarda técnica, nomeadamente para as comunidades do interior? Há alguma medida concreta sobre esta matéria?

R – A futura lei-quadro das parcerias público-privadas vai resolver esta questão, na medida em que os municípios poderão absorver muitas destas competências em parcerias. Para além disso, há ainda que aproveitar as transferências dos Gabinetes de Apoio Técnico (GAT) para estas novas entidades e também a dimensão técnica que existe nas Câmaras. Acho que é um bom caminho.

P – Se este modelo de descentralização é inspirado das Áreas Metropolitanas, que não funcionam, o que é que o leva a crer que serve para o resto do país?

R – As Áreas Metropolitanas ficaram aquém das expectativas, mas considero que os municípios do interior têm, face às novas centralidades, uma oportunidade única, assim saibam aproveitá-la. Há, pela primeira vez me Portugal, um Primeiro Ministro descentralizador que já anunciou a transferência da cobrança e liquidação de impostos do Estado para estas novas entidades. Quem cobra impostos tem autonomia, independência e receita, por isso estamos a falar numa machadada no Estado central que nos conduziu ao atraso. É disso que se trata: desenvolvimento ou sub-desenvolvimento. Esta é a alavanca para Portugal se tornar um país mais equilibrado.

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