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“O Coveiro”

Coisas…

A figura do coveiro é das mais injustiçadas do mundo. Profissão digna e indispensável, é sempre associada à morte e a indivíduos caladotes e obscuros que nunca ficam bem na fotografia.

A morte anunciada da maternidade da Guarda (e do hospital) terá muitos responsáveis, será consequência de anos de incúria política, alheamento social e fraqueza negocial, mas para que fique completa e absoluta, como qualquer morte, é necessária a intervenção do coveiro. E não nos esqueçamos de que o trabalho do enterrador começa bastante antes da chegada do caixão ao cemitério.

Nascem cerca de 1000 crianças todos os anos no hospital da Guarda; desses 1000 partos, em cerca de 400 podem as Mães sentir o alívio da analgesia por via epidural; antes do parto e nos 9 meses que o antecedem, foram as mulheres vistas, revistas e tratadas em centenas, milhares de consultas, diferentes e especializadas conforme o tipo de mulher. Todo este trabalho é proporcionado por muitos profissionais, treinados, dedicados, preparados. Enfermeiras, obstetras, anestesistas, pediatras (sim, por que os há), auxiliares de acção médica, administrativos, motoristas, porteiros. A coisa não é propriamente a brincar. Tudo isto para que o nível de satisfação, eficácia e segurança sejam altos. Corrijo: muito altos. Faz-se questão na Guarda há já muitos anos de que o nível de prestação não seja apenas bom, seja óptimo, pois só assim vale a pena trabalhar. Analisam-se índices de morbilidade e mortalidade, comparam-se com os de “lá de fora” e verifica-se que estão ao nível, se não melhor.

E no seio desta família que são as grávidas e quem as trata, somadas aos que vão nascendo, pergunta-se todos os dias: quando fecha? Lêem-se notícias de alarme, recados de bastonário, evasivas de políticos, silêncio dos responsáveis do hospital. Silêncio de todos? Não. Há quem se queira fazer ouvir e eis a figura do coveiro que aparece.

O nosso coveiro é diferente de todos os outros: anafado e saltitão, gosta de brilhar. Leva-se a sério. Abre covas sobre covas ainda antes de haver cadáver. Olha em volta sorridente supondo que ao abrir a cova corresponde ao que dele é esperado pelas “mais altas instâncias”. Será com certeza recompensado no final. O nosso coveiro não é guardense de berço mas de adopção, dirige e quer fechar serviços. Justifica-o com um chorrilho de lugares-comuns e frases desconexas. Brilha do alto do seu metro e meio de altura e meio metro de cultura. O nosso coveiro aspira à estátua na praceta do burgo em cima da qual cagarão os pombos e os pardais durante séculos e séculos (talvez sonhe mesmo tomar o lugar do busto do Dr. Sousa Martins).

Muito se pode (e deve e tem que) fazer para que a nossa maternidade não feche; para que se possa continuar a nascer na Guarda com conforto e dignidade. Mas antes do mais convinha talvez tirar a pá ao coveiro.

Com “guardenses” destes, quem precisa de “covilhanenses”?

Por: António Matos Godinho

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