Arquivo

O Breviário de Cícero

Razão e Região

Ao procurar, na livraria da FCI da Universidade Complutense de Madrid, títulos sobre comunicação e política, deparei-me com um curioso livrinho de Quinto Túlio Cícero, jovem irmão do mais famoso Marco Túlio Cícero, intitulado «Commentariolum Petitionis», ou seja, com um autêntico Breviário de Campanha Eleitoral (Quinto Túlio Cicerón, Breviario de campaña electoral, Barcelona, Acantilado, 2009), escrito com o propósito de ajudar a candidatura de Cícero a Cônsul. O que viria a acontecer.

A primeira coisa que se nota é o esforço de Quinto no sentido de delimitar muito bem o comportamento de candidatura do comportamento real. Como ele diz: do que se trata, neste discurso é, sobretudo, de como «atrair as massas», e não já de como cultivar amizades efectivas. Trata-se de uma distinção metodológica muito clara entre o plano político e o plano pessoal, naquele que é já um autêntico manual técnico que visa configurar o comportamento do candidato às exigências do sucesso eleitoral. Note-se que estamos no ano 64 A.C.. E quando nos manuais de teoria política é habitual ler que foi com Maquiavel, sobretudo em «O Príncipe» (1513), que se deu a laicização total da política, passando a ser concebida como técnica para o exercício do poder e retirando da sua esfera os fundamentos éticos e metafísico-religiosos, é bem interessante verificar que, a tantos séculos de distância, Quinto Túlio Cícero faça algo muito parecido com o que aquele fez, embora, claro, não de forma tão completa e sofisticada. É evidente que a de Quinto é uma perspectiva de natureza essencialmente comunitária, uma vez que a categoria mais recorrente no seu discurso é a de «amigo». Ou seja, a relação eleitoral era ainda lida com um código dominantemente comunitário, onde as relações de proximidade eram absolutamente decisivas. De qualquer modo, mais importante do que isto é a definição de linhas de força que tocam muito de perto a lógica do marketing político moderno: em campanha, diz ele, as aparências podem superar as qualidades naturais do homem (pág. 19). Ou seja: domínio da imagem sobre a substância. Depois, a gestão dos «benefícios», das «expectativas» e da «simpatia sincera»: o candidato deve saber gerir o património dos benefícios concedidos aos seus concidadãos, pedindo-lhes reciprocidade eleitoral; depois, Quinto formula claramente o princípio da chamada gestão de expectativas, propondo que o candidato esteja sempre disponível para responder plenamente às expectativas dos seus concidadãos em troco de prestações eleitorais favoráveis; finalmente, reconhece que para os partidários incondicionais é necessário produzir sempre um discurso de grande identificação afectiva com eles. Um outro aspecto muito importante no discurso de Quinto é o que se refere à cadeia de influências que se torna necessário desencadear junto das pessoas e grupos influentes, daqueles que têm o poder de replicar com sucesso o discurso do candidato, fazendo lembrar a famosa teoria do «two step flow of communication», de Lazarsfeld e Katz. Outro ainda é o que se exprime nas exigências da organização física da campanha do candidato, na exigência de permanentes cenografias e coreografias que dêem a sensação de um crescente apoio das várias classes sociais à candidatura. Por fim, há que sublinhar que pequena é a preocupação de Quinto em lançar campanhas negras contra os adversários, embora a isso haja uma referência explícita (pág. 81), tal como há uma referência ao culto de algum temor a incutir nos adversários (pág. 84).

Uma ideia-força percorre o texto de Quinto: o candidato deve cultivar a aparência do afecto, da amizade e da bondade até ao limite das suas forças, mesmo que para isso deva prometer aquilo que sabe que poderá vir a não cumprir, até porque o eleitor, segundo Quinto, aceita sempre melhor uma mentira piedosa do que uma recusa categórica: «aquilo de que não sejas capaz, nega-te a fazê-lo amavelmente ou não te negues; o primeiro é próprio de um homem bom, mas o segundo é próprio de um bom candidato» (pág. 70). Finalmente, e em homenagem a uma visão naturalmente comunitária da vida política romana, Quinto põe em destaque dois outros aspectos que ele considera essenciais para uma boa campanha: 1) que o candidato trate sempre o cidadão pelo próprio nome (pág. 67) e que 2) faça campanha permanentemente, não se ausentando de Roma, de modo a poder interpelar insistentemente as pessoas, evitando queixas (pág.s 68-69).

Este interessante texto romano vem juntar-se a outros interessantes textos que tecnicizam o modus operandi político em vários contextos: por exemplo, ao de Maquiavel sobre as normas que o Príncipe deve observar para conservar o poder (Séc. XVI) ou ao do Cardeal Mazzarino (Breviarium politicorum) sobre as normas técnicas para singrar politicamente no micro-sistema Corte (Séc. XVII). São textos que colhem lá bem no fundo da alma humana e que por isso são eternos.

Por: João de Almeida Santos

Sobre o autor

Leave a Reply