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O Big Brother de Truman Burbank

Opinião – Ovo de Colombo

A arte mistura-se com o exagero da realidade em todas as suas formas. Não é de estranhar, então, que o cinema se sirva dela e a transforme numa distorção de si própria para questioná-la.

O conceito moderno de reality show terá nascido com An American Family (1973), mas tem raízes em meados do século passado. Também The Truman Show (1998) não existe sem outras obras que, antes dele, usaram o filme como “a vida em direto” e indagaram sobre aquilo que, em 1999, viria a nascer como Big Brother. O fenómeno de registar o que admitimos como “vida real” levanta várias questões, mas estes programas têm-se mantido até hoje. E em força.

O argumento de Andrew Niccol surgiu em 1991 – foi reescrito depois – e é a sua “obra-prima”, perpetuada pelo realizador Peter Weir. Um quase-deus omnipresente, Niccol coloca Truman Burbank (Jim Carrey) aos olhos do mundo, sem escapatória visível a olho nu. Em The Truman Show (1998), os reality shows – viciados e celebrados no poder que lhes foi concedido – vão mais longe e adotam uma criança cuja vida é reproduzida 24 horas por dia. Sob a alçada de uma “companhia” – grupo presente em vários filmes – que tudo pode, a televisão cria Truman e o seu quotidiano até este ser um vendedor casado e inserido numa rotina banal.

Truman vive numa “bolha” isolada do resto do mundo, onde é alvo de todas as atenções mesmo quando dorme, sem saber. O “universo-mentira” apresentado não é só uma crítica reflexiva aos reality shows, mas também um olhar sobre a religião e o capitalismo. Truman divide-se em true man (homem verdadeiro) e Christof (Ed Harris), o criador do Truman Show, em Christ off (Deus fora). Há aqui o confronto ente o homem “puro” e o seu criador, que se assemelha a um dono sem escrúpulos ou limites, a quem tudo é permitido. Chamando a verdade até si, Christof mostra uma falsa realidade, ilusoriamente privada, em que atores e técnicos são meras marionetas de um poder tido como absoluto. Como pode Truman fugir se não sabe que está preso?

Aceitamos o que nos é dado como um puzzle, em que o sentido se vai construindo sem ser questionado. O Truman Show é irrisório, mas a sua familiaridade interroga-nos: será assim tão impossível? O poder que damos às “companhias” não se virará um dia contra nós? Truman é um Jim Carrey oferecido sem disfarces e entre comédias, frágil às mãos de um mundo com que já gozou. Às nossas mãos. E, acreditando que estamos fora da “bolha”, não damos conta que ela se vai fechando sobre nós.

Por: Sara Quelhas*

*Mestranda em Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra

Próxima semana: Cristina Caramujo

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