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Nova Orleães (NO) ou o luto (parte II)

“(E entretanto passou um século. Onde raio parará o meu esqueleto?)”

José Gomes Ferreira em “Imitação dos dias”

Não pensem que vou interromper as minhas crónicas de Nova Orleães para falar no rato e nas ratazanas. O seu a seu tempo e a César o que é de César. Para não passar completamente ao lado direi que subscrevo inteiramente o ponto de vista partilhado pelo Fernando Rosas e pelo Marcelo Rebelo de Sousa: o Iraque não têm sistema jurídico e os criminosos de guerra devem ser julgados num Tribunal Internacional.

Voltando ao que interessa.

Estávamos nós, pois, no almejado enterro. Sim, porque foi preciso calcorrear vários kms para lá chegar. Com tanto azar que fomos dar, primeiro, ao ponto de chegada, o Museu Tradicional de Arte de NO e depois foi preciso acelerar em direcção à casa funerária Duplain W. Rhodes, que opera no ramo dos funeral homes – funerais feitos a partir de casa – desde 1860. Os funeral homes são uma tradição de NO. O ente querido é velado em casa, na mesa da sala de jantar, e é de casa que parte para o cemitério. A missa realiza-se na igreja, na manhã do dia do funeral, mas o morto não assiste ao serviço.

Tendo em conta que se tratava de um second line funeral* e não havia defuntos verdadeiros para acompanhar, o cortejo partiu da Rhodes. Antes, consumiram-se grandes quantidades de uma deliciosa bebida cor de laranja, de nome desconhecido e elevado teor alcoólico, servida com muito gelo em enormes alguidares de plástico, onde as pessoas mergulhavam repetidamente os copos, e petiscaram-se diversas variedades de petit fours.

O carro funerário, forrado de cetim azul, conduzido pela imponente figura de um negro de fraque e chapéu de coco e por um rapazinho branco de ar esgrouviado, puxado por dois cavalos negro-azeviche ricamente aparelhados, carregava os símbolos emplumados de duas importantes figuras, já fenecidas, do Mardi Gras: os chefes “índios” Gerard “Jake” Millon e Sterling Desmond.

R.I.P. ( Rest In Peace **), diziam os cartazes.

À frente, como já disse, tronitroava a jazz brass band. Ao lado e atrás seguiam os acompanhantes: negros de andar bamboleante, de garrafa de cerveja em punho, senhoras de aspecto requintado, brancos americanos de aspecto anódino e turistas de olhos arregalados.

Tentando distanciar-me do ruído encontrei um grupo equipado com simples instrumentos de percussão que lançava entre si frases semi-cantadas. O sotaque era cerrado e eu não entendia patavina do que diziam mas devia ser apelativo porque todos americanos em redor começaram a acompanhá-los, cantando e dançando ao som dos tambores.

A certa altura lembrei-me da minha avó que tanto gostava de cantorias, com especial destaque para o “Red, red wine”, embora não fizesse a mínima ideia do que a frase queria dizer (só falava francês) e vieram-me as lágrimas aos olhos.

Comentei para um dos negros bamboleantes que ia ao meu lado: ” No meu país, neste dia, as pessoas estão sempre tristes”. Ele olhou-me com absoluta estranheza: “Ai sim… nós aqui estamos sempre contentes”. E bêbedos… pensei para comigo.

Quando chegámos ao nosso destino, o Museu, o negro, um homem já idoso, fez-me sinal para entrar: lá dentro estavam as máscaras dos mais famosos chefes do Mardi Gras, mortos e vivos.

A de um deles, All Morris, o líder do North Side Skull & Bone Gang tinha anexa a frase com que ele inicia o desfile na manhã de todos os Mardi Gras:

“You´re next, you´ve better watch out, because you´re next!”***

Saí cá para fora e pisquei-lhe o olho em sinal de entendimento. Fui buscar água e sentei-me ao sol a comer arroz com feijão e bolinhos de chocolate preto, como todos a gente estava a fazer. Era de borla e temos que nos tratar bem enquanto é tempo.

* Enterro simbólico

** Descansa Em Paz

*** Tu és a seguir, cuida-te, porque vais a seguir!

Por: Maria Massena

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