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Nós somos o japonês que não acreditava no fim da guerra

Há dias, morreu aquele soldado japonês que ficou perdido na selva das Filipinas (Ilha de Lubang) até aos anos 70. Entre 1945 e 1974, Hiroo Onoda recusou acreditar no fim da guerra e continuou a sua missão: sobreviver até à chegada de reforços, qual Rambo japonês; durante três décadas comeu aquilo que apanhava ou matava no mato. Também matou uma ou outra vaca aldeã e, calculo, um ou outro camponês, não por canibalismo mas por segurança – a sua posição não podia ser revelada. Onoda ficou famoso no Japão em 1950, quando um dos soldados envolvidos na sua missão conseguiu regressar a casa. A estória da sua rendição e do seu regresso como herói em 1974 são outros quinhentos, mas por agora eu só queria destacar um ponto: o estado de negação de Onoda é, com certeza, um caso extremo e cinematográfico, mas é um estado mental que todos nós partilhamos. Nós somos aquele soldado que esteve isolado na selva de forma consciente e livre.

Durante aquele tempo, Onoda considerou sempre que os panfletos espalhados por avião a anunciar a paz só podiam ser propaganda inimiga. Ora, a ideia de que a realidade só pode ser uma maquinação ideológica do outro lado é uma constante na história. Na história e na atualidade. O colapso dos sistemas de segurança social provocado pela nova realidade demográfica continua a ser descrito como mera propaganda por muitos sectores. Repare-se que não têm soluções diferentes para o problema. A sua posição é outra: recusam em absoluto a existência do problema. Apetece dizer que, ao pé desta negação de milhões, a negação de Onoda é brincadeirinha.

Mas deixemos as negações coletivas e entremos na negação individual. Nós tapamos os ouvidos quando alguém critica os nossos filhos. Não, ele não é mal-educado, o problema está nas companhias, nos professores, na escola, o problema é o mundo e não o nosso menino. Dêem-me uma selva tropical e eu acreditarei até ao fim dos meus dias que a minha filha é uma santa. Nós adiamos uma ida ao médico porque não queremos ouvir factos desagradáveis; a negação não altera a realidade médica do nosso corpo, é verdade, mas aquele fingimento torna a vida um pouco mais suportável. Quando regressou a casa, Onoda não encontrou o seu Japão. A velha cultura baseada na vergonha tinha desaparecido para dar lugar a uma sinfonia de modernices incompreensíveis. A ilusão de que a guerra não tinha acabado fazia mais sentido do que a sociedade concreta que tinha ali à sua frente. Todos nós somos assim. A nossa existência moral precisa de balizas concretas, empíricas, factuais. Aceitar que essas balizas já não existem é uma espécie de suicídio, um hara-kiri moral. Onoda é um espelho.

Por: Henrique Raposo

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