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Nivoso

1. Durante o passado fim de semana, decorreu no Hotel Turismo, na Guarda, a iniciativa “Hotel”, integrada no “Guarda Ar de Natal”, promovido pela Câmara. A juntar aos sinais que já foram dados, do programa e das opções seguidas retira-se muito do que irão ser as linhas de acção da autarquia em matéria de política cultural. Passemos a enunciá-las: 1. Justificar a opção pelo folclorismo e amadorismo com a “falta de dinheiro”. Ora, a maior ou menor disponibilidade financeira está a jusante das opções políticas e não o contrário. Ou seja, primeiro definem-se as prioridades e depois concretizam-se, ajustando-se os meios aos fins e não os fins aos meios. Tudo o que passar pela utilização abusiva do argumento da falta de recursos só servirá para semear a complacência e o servilismo. 2. Ausência de uma estratégia de longo prazo na cultura. Ou seja, pôr de parte aquilo que realmente pode fixar competências e estruturas, criar públicos, criar massa crítica. Ao invés, opta-se pela “animação” inconsequente, pelo foguetório. 3. Politização extrema dos “eventos” e “iniciativas” que, de forma errática, se vão sucedendo no tempo. Ou seja, aparecem sempre como uma dádiva generosa do poder à populaça-que-adora-folclore-concertinas-e-leitão-assado. Um potlach promovido pelo Regedor da freguesia aos vizinhos (no sentido dos foros medievais). 4. Esvaziamento e controlo político/burocrático do TMG. Tema já aqui abordado. Podemos então apontar algumas conclusões: 1. Vai triunfar uma visão ciclotímica da cultura, de curto prazo, propícia à imbecilização e à propaganda. 2. Quem detesta folclore, mau teatro de feição rural, concertinas e arruadas, como é o caso do escriba, vai ter a vida difícil. Ou seja, quem acredita completamente que a Guarda pudesse fingir não ser aldeia, até deixar de ser a aldeia que deveras é (Pessoa que me perdoe estas liberdades) vai ter que adiar o seu sonho.

2. Uma emissão recente do programa “Quadratura do Círculo” foi exemplar a vários níveis. O debate nem teve a crispação ou a irredutibilidade, ainda que sempre em tom cortês, que já vi noutras ocasiões. Foi exemplar porque evidenciou com uma clareza diáfana os vários modos de estar na política em Portugal e os diferentes discursos de que faz uso. E muito graças à presença do convidado Miguel Frasquilho, em substituição (nominal) de Lobo Xavier. Ora, o deputado do PSD teve vários registos. Numa primeira fase, parecia deslumbrado por estar ali, num espaço onde a qualidade e pertinência do debate são imagem de marca. Mas cedo veio à tona a sua verdadeira natureza, o único discurso que consegue realmente apresentar. Ou seja, a chicana parlamentar, a sofística sem recato, uma metalinguagem partidária que alimenta uma meta realidade narcísica, que por sua vez justifica o discurso que a legitima. Esta armadura de eufemismos concêntricos é a característica suprema da esmagadora maioria dos políticos da III República. E que decerto envergonharia Adriano Moreia, cujo último livro, “Memórias do Outono Ocidental, Um Século sem Bússolas”, merece uma visita. Por sua vez, o habitual discurso de Pacheco Pereira, estratificado, analítico e de proximidade com a realidade concreta que pretende chamar a si, incomodava visivelmente Frasquilho. Que preferiu sempre ser o interlocutor de Costa, como se estivesse na bancada parlamentar. Ignorando ostensivamente as alfinetadas de JPP. Pensando certamente que, em politiquês, entre “homens de partidos”, a similitude do código relativizasse a disparidade da substância. E que a pose institucional, digamos, “primo-ministeriável”, de Costa, limasse as divergências, circunscrevesse as clivagens. Entretanto, a realidade concreta dos portugueses, o estilhaçar da esperança colectiva, o “no future” inscrito no rosto de cada vez mais, novos e velhos, homens e mulheres, é, para políticos como Frasquilho, pouco mais do que uma reserva estratégica de piedade, de sórdida comiseração. Usada para ilustrar determinado argumento na chicana mediática, que alguns confundem com labor político. Uma realidade que nada tem a ver com o miserabilismo cínico de muitos. Mas próxima, terrivelmente próxima dos quadros de Georg Grosz e Otto Dix. E que só os repórteres sociais, os filantropos românticos, da estirpe de Mark Twain e George Wells, se dispõe a conhecer, a retratar e dignificar. Com os políticos, o melhor é nem contar…

3. Toda gente, ou quase, pode ver, nas redes sociais, as fotos da selfie de Obama, Cameron e a PM dinamarquesa, e a cena de Michelle Obama que se seguiu, durante as exéquias oficiais de Mandela. A irritação ciumenta da primeira-dama deveu-se, ao que parece, ao convívio para lá do protocolo entre as três figuras referidas. E especialmente do seu cara-metade. Como se nota, o nível das primeiras damas evoluiu desde a classe pura de Jackie Kennedy até ao trivial suburbano. Enfim, uma cena digna de uma (má) telenovela mexicana… Porém, aqui exigia-se classe e não “boas maneiras”. Sucede que, ter ou não boas maneiras nada tem a ver com classe. Pode coincidir ou não. Mas são realidades de ordem diversa. Enquanto “boas maneiras” é um ideal burguês, a classe é um atributo, digamos, aristocrático. Voltando ao que interessa: a primeira-dama foi igual a ela própria. Devia estar acima das circunstâncias? Devia. Saberia lá chegar? Ficou demonstrado que não. Portanto, isto nada tem a ver com protocolo, mas simplesmente com falta de tacto. Até porque é fora da segurança e do constrangimento da forma que o conteúdo se revela na sua plenitude. Ou seja, que a verdade, para o melhor e para o pior, se impõe.

Por: António Godinho Gil

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