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Ninguém duas vezes!

Embarcados p´rás tromentas/ Com fartura d´incertezas/ Adeus cais da felicidade/ Lá vão barcas Portuguesas/ Oh! enganadoras luas Trópico de capricónio/ Madrastas de bode preto/ Enteadas do demónio/ Oh! império de má memória/ Dos cães de fila da moda/ Voa vai negra andorinha/ Pede à minha namorada/ Dê notícias de Lisboa/ Das praças livres, dos cravos/ Das saudades que lhe tenho/ De vê-la subir a rua…/ A cantar a tal cantiga Primavera não esquecida…Vitorino (Marcha Ingénua) 1983.

Na segunda metade dos anos setenta circulava despreocupado em Lisboa na rua do Ouro, antiga via privilegiada de negócios, câmbios, mercado de ações e outras movimentações financeiras, que ontem como hoje sei existirem por ouvir falar disso a outros. Era bem visível o efeito da nacionalização da banca, seguros e casas de câmbio em março de 1975 e as marcas ideológicas “disputavam-se” nas paredes através de palavras de ordem que o tempo foi infelizmente apagando da memória coletiva das pessoas. A determinada altura olho para o que foi a loja de câmbios que julgo que se chamava Pancada Moraes e vejo a montra do que em tempos era um “quase relicário” de notas, moedas e medalhas, substituídas por artesanato diverso. Até aí nada de extraordinário, mas de facto nunca mais me esqueci do nome mais feliz que um estabelecimento comercial poderia ter: “Era uma vez um cambista”. Um registo comercial de grande dignidade e de uma argúcia notável. A casa teve uma duração efémera, mas nunca mais me esqueci do nome e do que foi a sua história. Por acaso acho que hoje, sem esse nome, o lugar vende pins de frigorífico com várias alusões a Lisboa e santas diversas ou talvez panos da louça com o galo de Barcelos e garrafas de vinho do Porto marado.

Ando com pouca disposição para grandes prosas, já que o tempo tem sido pródigo em factos que são pífios, e que sinceramente nem merecem que eu próprio dê demasiado ênfase a pessoas e atitudes que pouco me surpreendem!

Com tristeza, e isso sim merece ser relevado, soube da morte inopinada do “Capitão Valente”, com quem ocasionalmente partilhava algumas conversas num café que ele frequentava habitualmente em Coimbra, perto da sua residência.

Augusto Monteiro Valente era um homem com quem tive em tempos idos profundas divergências ideológicas, mas isso nunca nos distanciou e, efetivamente, hoje tínhamos muito mais convergências que o contrário na nossa forma quotidiana de olharmos para a evolução da sociedade nestes trinta e oito anos de democracia política.

Quando às vezes fazíamos uma retrospetiva dos seus tempos de coordenador do MFA numa região reacionária, como era o distrito da Guarda no longínquo e saudoso PREC, ficámos ambos com a sensação que talvez tivesse sido bom que abril devia ter passado por aqui de outra forma. A realidade é que a generosidade com que ele se empenhou na defesa de valores de liberdade, democracia e solidariedade acabaram por ser adulteradas pela herança do caciquismo herdado do anterior regime que, apesar de tudo, ainda se vai perpetuando no quotidiano de algumas autarquias e estados-maiores dos partidos.

Esta homenagem póstuma ao “Capitão Valente” é seguramente necessário partilhá-la com todos os brilhantes soldados de um 25 de abril de 1974, que gostávamos que estivesse vivo no quotidiano das gentes deste país.

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu no’“Contrato Social”: «Uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém».

Por: Fernando Pereira

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