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Não te metas com o meu défice

Observatório de Ornitorrincos

A cigarra e a formiga viviam em união de facto homossexual há quase seis anos. Importa pouco se a longevidade destes bichos atinge essa duração e se “a cigarra” e “a formiga” sejam designações para as duas espécies na generalidade e não apenas para os seres de sexo feminino. Eis aqui um exemplo do erro feminista quando acusa a linguagem de ser opressivamente masculina. O exemplo clássico que dão é Deus pedir o verbo no masculino. Sim, mas cigarra e formiga, por exemplo, são substantivos femininos. E eu não tenho a certeza que Deus exista e cigarras e formigas já as vi. Por isso, deixem-se de queixinhas sem jeito nenhum e voltem lá a pôr os wonder-bras no devido lugar.

Voltemos agora à pequena estória desta cigarra e desta formiga em particular, cuja vivência peculiar não era estranha no reino animal, muito mais tolerante e progressista que o mundo dos humanos. Se os animais votassem, o Bloco de Esquerda ganharia eleições, provavelmente com maioria absoluta.

Neste casal, a cigarra ganhava substancialmente mais dinheiro com as suas cantorias do que a sua companheira a transportar coisas pesadas de um lado para o outro. Ao contrário do sucedido na fábula tradicional, nesta época de modernidade em estado líquido uma tipa do showbiz consegue receitas substancialmente maiores que uma fêmea a trabalhar na estiva.

O único atrito entre as duas amantes era uma pequena questão ideológica. A cigarra, cantora de intervenção hip-hop, artista de esquerda (passe o pleonasmo), discutia muito com a formiga por esta não ter “consciência de classe”. «A estiva», dizia a cigarra, «não é nenhuma vergonha. O operariado precisa de se consciencializar da sua condição. Nós, os intelectuais, seremos a vanguarda da revolução.» A formiga aturava isto porque o dinheiro dos concertos e dos direitos de autor permitia um estilo de vida semelhante ao da “opressora burguesia abastada” – que a cigarra criticava nas suas canções.

Certa tarde, gozava a formiga do seu dia de folga, com todos os direitos sociais garantidos, e viu-se na necessidade de atravessar um rio. É sabido que as Obras Públicas não são uma preocupação fundamental no mundo animal, pelo que a formiga não tinha nenhuma ponte por onde atravessar para a margem contrária. Foi nesta altura que apareceu um elefante que se ofereceu para lhe dar ajuda. A formiga, muito mais TV 7 Dias que Marie Claire, aceitou de imediato, sem pensar nas questões da emancipação feminina. No fim da travessia, o elefante sugeriu que a formiga pagasse o favor com um sacrifício sexual – o clássico «Obrigado, não. Baixa mas é as calcinhas!». Por um daqueles acasos que costumam ocorrer nas fábulas, a cigarra estava de passagem por ali, a caminho da Animanifesta, onde iria actuar depois de um recital de textos políticos de Gaetano Mosca e antes da actuação do rei, Rodrigo Leão.

Ao ver aquela cena de violência sexual tantas vezes denunciada, a cigarra enfrentou o elefante e disse-lhe: «Esta rapariga, apesar de humilde operária da estiva, não tem de aturar os teus problemas de auto-estima. É pobre mas eu gosto dela. Por isso, desaparece daqui e não te voltes a meter com o meu défice.»

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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