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Não há falsas urgências

Tenho lido o texto do momento que refere a presença “menos apropriada” de doentes nas urgências, rondando 2 milhões de consultas que poderiam ter ido a outra instituição. Ocorrem-me uns desabafos de experiência vivida.

A rotulagem de doentes por sistemas de prioridades é um método de resolver os fluxos excessivos criando mecanismos de triar os mais graves. É um bom princípio para sair da ordem de chegada onde a doença e não o tempo de espera são importantes.

Estes fluxos não são iguais em todas as instituições sendo dependentes de vontades e de lideranças, logo, dando cores a situações clínicas que noutros lugares são diversas. Também os encaminhamentos variam por instituições. Primeiro erro: a ausência de coerência num método que o devia ser. Concluir desta disparidade afirmações perentórias acarreta perigos.

Os “overusers”, os utilizadores massivos de urgências, são poucos em volume, mas frequentemente têm um pendor social associado e não um pendor clínico. Recorrem porque são pobres, recorrem porque não têm alternativa e recorrem porque o lugar que os devia seguir se recusa a fazer o seu atendimento. Fomos pioneiros na realização de um estudo deste tipo na Urgência do Hospital de Aveiro em 2003, onde a Drª Marta Temido (ACSS) era administradora. Encontrámos apenas 130 utilizadores de mais de doze urgências por ano e todos foram estudados pelo Serviço Social. Quem cansa o pessoal das urgências não são os doentes, são os mal-educados, os alcoólicos agressivos, os familiares que chegaram do outro país para nos ensinar, as querelas entre familiares na troca do pai idoso da casa de um para outro, as famílias que se recusam a cuidar dos seus doentes, a violência por vez do equilíbrio.

Os doentes vão à urgência quase sempre com uma razão que para nós pode ser ridícula, mas se baseia na sua sensação subjetiva de risco e precisam muitas vezes apenas de uma voz que os acalme. Leva-os o medo. Como clínico encontrei imensos verdes que tiveram de ser internados e imensos laranjas que vieram a ter alta. Este não pode pois ser um critério de aferir adequação ao sistema. Por protocolos “de princípio das cautelas” muitos doentes traumatizados entram como laranja e não correspondem clinicamente a qualquer lesão que coloque em risco a vida. Trata-se do cumprimento de um protocolo que pode salvar vidas, mas produz desconformidades numa análise deste tipo. Porque os doentes são clientes do sistema devem ser atendidos com respeito e adequação. Mas algum técnico de saúde foi formado em relações pessoais? Alguém ensina como atender pessoas? Da minha experiência os enfermeiros lidam melhor que os médicos com os doentes. Há mais queixas por forma de falar do que por negligência. Mas claro que no caos é difícil conseguir criar empatias.

A análise das urgências deve fazer-se sobre as causas (diagnósticos de saída) dos utentes. Que patologias recorrem às urgências? Imensas feridas crónicas. Imensas contusões da parede torácica. Imensos traumatismos cranianos. Feridas agudas. Mordeduras de animais. Queimaduras da exposição ao Sol. Descompensações de doenças crónicas. Agravamento clínico oncológico. Dor lombar. Limalha no olho. Espinha na garganta. Dores articulares específicas. Gastroenterites. Diabetes e sua infinidade de problemas. Obstipação. Cólica Renal. Um número finito de patologias de pedirmos mais de 20 casos por ano. Isto significa que pessoas formadas nestas situações com especial cuidado podiam resolver a maioria destes problemas. Agora não culpem o doente, que não sabe o que tem, de estar errado.

A referenciação de Instituições (lares, cuidados continuados, misericórdias) onde os idosos quando descompensam vão diretamente à urgência é outra causa de híper utilização. Mas algum hospital se lembrou de abrir uma consulta aberta para observação de doentes em outras Instituições? Apenas este gesto resolvia a chegada de dezenas de acamados aos serviços de urgência por dia. Os clínicos que deviam dar apoio a essas instituições são aferidos nos seus resultados? Um clínico que serve de sinaleiro não resolve sistemas, mas complica porque referência sem estudo e sem observação.

Porque vão os doentes à urgência? Porque têm uma dúvida, a dúvida dispara a ansiedade e não tem outra porta gratuita, ou quase, para recorrer. Ninguém vai por gosto esperar horas sem fim. E ninguém, se pudesse pagar, não evitava o calvário.

Os hospitais estão sobrelotados porque eles próprios não criam melhor gestão de recursos. Há imensa gente escalada de urgência por esse país fora que não exerce o seu dever de observar e tratar doentes. Há uma enorme quantidade de clínicos que não exerce o trabalho para o qual está escalado e assim sobrecarrega os outros e condiciona tempos de espera brutais. Ter seis numa escala e só trabalham dois é inaceitável. Podemos corrigir isto? Obviamente! Os computadores permitem aferir volumes, aferir tarefas e a liderança exercida por quem a merece, resolvia este problema. Falta a coragem do incómodo e salários estúpidos a quem manda não incentivam o exercício da discussão.

Porque temos ACSS, DGS, ERS, ARS, IGAS, Ordens e Sindicatos e inúmeras mais instituições para melhorar o sistema e ele não melhora? Se calhar há um vício de forma e precisamos de menos normas, menos Instituições e mais e melhor liderança. Opções mais discutidas e depois aferidas. O exemplo do caminho para os cuidados continuados que são um erro político, uma ideia de construção de espaços de exclusão de idosos e menos válidos. Esta ideia subverte o princípio da família como núcleo social. Num país de milhares de desempregados a maioria dos doentes podia estar com um familiar desempregado a quem o Estado pagava, formava, fiscalizava e adequava para o cuidado. Já vão 400 milhões de euros para os Cuidados continuados anualmente, a maioria dos quais para dar emprego a pequenos poderes e grupos empresariais. Com menos diarreia legislativa e uma ASAE da Saúde corrigíamos as inadequações dos oitenta hospitais públicos. Há muitos que deviam até fechar para consolidar melhor resposta noutros. Muitos deviam ver as suas chefias mudadas após a avaliação obrigatória anual das competências e resultados. Nunca uma avaliação tem consequências. Nunca um tipo que não trabalha é punido neste país.

A Medicina Familiar pode ser a base do sistema se permitirem a proximidade das especialidades aos cuidados primários. Nas USF tem sentido a presença de consultas de especialidades mais comuns como ortopedia, cirurgia e medicina interna.

Havia muito mais a dizer, mas não quero cansar o auditório antes de esgotar o assunto.

Por: Diogo Cabrita

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