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Não há desastres naturais (2)

Theatrum mundi

Como encarar então os desastres naturais? De que maneira a natureza é estratégica numa catástrofe que parece ter contornos naturais? Ela é estratégica porque acentua as vulnerabilidades sociais face aos elementos e as desigualdades no acesso ao factor material que a compõe, umas e outras produzidas por processos bem humanos que ditam o ganho de uns em detrimento de outros, nas relações entre sociedades e dentro de cada sociedade. A calamidade no Haiti veio lembrar que não há desastres naturais, um pressuposto crucial que nos deve obrigar a encarar o que se segue – a ajuda para a reconstrução do Haiti mas, mais do que isso, as políticas de cooperação e desenvolvimento à escala global – de uma maneira renovada.

Dito isto, um paradoxo do olhar compassivo sobre o Haiti, mediado pela parafernália da informação, pode bem vir a ser a naturalização do desastre e da inevitabilidade das suas calamidades. Ao despertar a solidariedade global e a ajuda material à população do Haiti, esse olhar compassivo dos media, a turba de turistas especializados e profissionais, pode bem contribuir para reforçar a convicção das audiências globais no carácter natural deste tipo de desastre, fazendo esquecer que a natureza é mais estratégica que natural e um recurso material e semiótico polivalente. Fazendo esquecer, por exemplo, as decisões políticas de governação local e global que têm agravado as vulnerabilidades sociais da população haitiana e contribuem para debilitar a resiliência humana face ao risco. Por isso é tão importante a literatura que, nos últimos dez anos, tem procurado mostrar de que forma uma parte significativa da devastação provocada por desastres naturais se deve a práticas ecológicas destructivas e potenciadoras da desgraça. É o caso do importante artigo que Janet Abramovitz escreveu, em 2001, para o Worldwatch Institute. Em “Unnatural Disasters”, Abramovitz destaca que “muitos ecosistemas foram fragilizados ao ponto de perderem a resiliência e deixarem de ser capazes de suportar choques naturais, criando as condições para os ‘desastres não-naturais’ – os que são tornados mais frequentes ou mais severos pela acção humana.” Para além do mais, estes desastres exacerbados pela acção humana sempre deixam o impacto mais gravoso sobre aqueles que menos condições têm para os enfrentar, as sociedades mais mais pobres e vulneráveis e os mais pobres e vulneráveis no seio de cada sociedade. E como lembra Abramovitz no seu artigo, a migração das populações para as cidades e zonas costeiras, a par com a expansão desordenada do ambiente construído, tem contribuído fortemente para a vulnerabilidade face aos elementos.

A literatura sobre o risco e a vulnerabilidade social também tem contribuído para um conhecimento mais aprofundado no que toca a esta relação crítica, com atenção centrada nas forças económicas e sociais que potenciam os resultados das calamidades. Assim, em At Risk: Natural Hazards, People’s Vulnerability, and Disasters, Blaikie et al. sublinham que a vulnerabilidade social “involve a combinação de factores que determinam o grau em que a vida de alguém é posta em risco”. A este propósito, Zahran et al. precisam que “a vulnerabilidade social é definida pela posse de atributos sociais que aumentam a susceptibilidade às calamidades” e mostram a necessidade de estudar a fundo as dinâmicas sociais e políticas que produzem a desigualdade no acesso aos recurso naturais da natureza. Em Social vulnerability and the natural and built environment, estes autores identificam a questão de saber porque certos grupos de pessoas são atirados para viver em zonas de risco e não dispõem dos recursos necessários para resistir e recuperar dos desastres ‘naturais’.

Nos últimos dez anos, esta literatura, e o impacto que alcançou nos media de todo o mundo, foi responsável por olharmos hoje o agravamento dos desastres meteorológicos com o olhar crítico de quem não pode separá-los da acção humana sobre a mudança climática e sobre o meio ambiente em geral. A literatura sobre desastres não-naturais centra-se precisamente na relação crítica entre degradação ambiental, e consequente escassez de recursos materiais e sociais, e o impacto dos elementos (furacões, cheias, fogos florestais, seca e desertificação). Julgo que também no caso de um terramoto, aquele que assolou o Haiti a 14 de Janeiro, por exemplo, é crítico sublinhar o que há de não-natural na catástrofe que provoca. Que a terra trema, é natural; mas que atire a população para a anarquia e a des-civilização (nas palavras de Timothy Garton Ash) é mais o resultado de um certo grau de anarquia e des-civilização preexistentes, e da acção de forças económicas e sociais que agravam a vulnerabilidade das sociedades, do que dos desígnios insondáveis da natureza ou do equilíbrio das placas tectónicas. Desta forma, toda a solidariedade dos últimos meses e o esforço da comunidade internacional na reconstrução do Haiti serão, em grande parte, desperdiçados se estes factores forem ignorados. A abordagem mais adequada para a reconstrução do Haiti é a que assenta na produção de segurança humana como mecanismo integral centrado na redução das vulnerabilidades sociais. A calamidade obrigou as populações de Port-au-Prince, da forma mais cruel, a reconhecerem essas vulnerabilidades e a desigualdade no acesso aos recursos. Face a isto, não é de estranhar que se esteja a assistir já ao êxodo urbano, em direcção ao campo e a modos de vida mais sustentáveis e resilientes.

Confrontada com a reconstrução do Haiti, a comunidade internacional solidária tem que reconhecer que a ajuda não é suficiente e que é nos modelos de governação local e global que é preciso encontrar as verdadeiras soluções. A destruição da produção de arroz haitiano, nas décadas de 1980 e 1990, mediante a liberalização da economia e consequente importação de arroz barato proveniente dos Estados Unidos, tem sido apontada como factor crucial para perceber as vulnerabilidades sociais no Haiti destroçado pelo terramoto (incluindo o êxodo rural em direcção a Port-au-Prince). O dado é crucial e deve servir para que as instituições internacionais, como o FMI, e os grandes actores comerciais, como os Estados Unidos, dêem mais atenção a uma abordagem integral da cooperação e do desenvolvimento, que privilegie a produção de segurança humana e o reforço da resiliência das populações e sociedades mais vulneráveis.

Por: Marcos Farias Ferreira

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