P – Esta é uma adaptação livre a partir das obras “Peregrinação Interior” e “Pesca à Linha”, de Alçada Baptista, feita em jeito de homenagem. De onde lhe surgiu a motivação para este trabalho?
R- Não sei se “homenagem” será o termo mais apropriado, mas trata-se sem dúvida da manifestação de um grande respeito e apreciação pela obra de Alçada Baptista. A ideia foi-me proposta pelo GICC e recebi-a com grande agrado, consciente de que seria também um grande desafio. Não é fácil transcrever para teatro os livros deste escritor devido ao tom extremamente confessional, intimista e reveladores de um universo muito próprio experimentado pelo autor. A meu favor jogou o facto de também ter tido as minhas tias, certamente não tão carinhosas e marcantes quanto as dele, mas igualmente beatas, como era uso na época. De resto, na peça, o Alçada Baptista dirá em palco: «Eu sou o meu tempo». No fundo, somos todos o resultado da nossa época. O que procurei transpor para o teatro foram a infância e adolescência do escritor, que são as épocas mais importantes da nossa existência. Por outro lado, tentei retirar das obras aquilo com que me identifiquei mais, proporcionei-me também a um certo “egoísmo”.
P- Mantém alguma relação de afectividade com as obras do escritor covilhanense?
R- O contacto mais profundo com os livros de Alçada Baptista é recente. Já tinha lido há uns anos a “Peregrinação Interior”, conhecia a bibliografia e a figura do escritor, enquanto director do Instituto do Livro. No entanto, a leitura mais atenta que fiz recentemente revelou-se uma boa surpresa. Há um certo encanto e muito significado no registo que utiliza para passar e avaliar uma época anterior à nossa. As suas obras são um sinal dos tempos extraordinário. Paralelamente, gostei particularmente de dois aspectos com os quais me identifiquei. A dada altura o escritor tem a ousadia de dizer que não concorda com a letra do hino nacional, estabelecendo um paralelo curioso: se as línguas se transformam, porque não se poderá também transformar a letra do hino? Outro aspecto que me fascinou foi o facto dele defender o direito à preguiça. Na verdade, o trabalho é uma alienação. A lei do menor esforço e de trabalhar o menos possível são ideias progressistas e civilizadas.
P- Que fio condutor procurou seguir aquando da adaptação?
R- Toda a história é contada na primeira pessoa, como acontece nos seus livros. Tudo se passa como se fosse o próprio escritor a falar ou como qualquer advogado formado em Lisboa, mas cujo coração está na província, o faria. Para além disso, a dramaturgia usada é tão simples como a dramaturgia presente nos livros. Trata-se de uma sucessão de cenas roubadas ao autor e contadas por ele, mas que não obedecem a uma ordem cronológica. Procurei retratar o calor beato da família, sobretudo das tias, e relatar o percurso de Alçada Baptista até aos 20 e poucos anos.
P- O que pode esperar o público deste trabalho?
R- Pode sorrir e, espero, identificar-se com o que vai ver em palco, até porque não gosto de fazer teatro só para mim, mas sim a pensar em quem está do outro lado. Acredito que as histórias retiradas do imaginário de Alçada Baptista têm tamanha carga, irreverência e liberdade que facilmente conseguem agradar, pelo seu humor solto e livre. O humor é, aliás, uma marca do autor extremamente bem conseguida. Por outro lado, também as ambiências presentes nas suas obras, características dos anos 30 e 40, onde o salazarismo está bem patente, ainda fazem parte do que somos, embora não as tenhamos vivido.
P- Esta não é a primeira vez que encena para o GICC. Como surgiu esta ligação?
R- A primeira peça que montei com o GICC chamava-se “A Arte da Comédia”, de Eduardo de Fillipo, há 12 anos. Posteriormente, há cerca de dez voltei à Covilhã com o trabalho “As Longas Férias de Oliveira Salazar”. Mais recentemente também encenei a peça “Crónicas”. De resto, comecei como actor nas companhias O Bando e A Barraca.
P- Que opinião tem do público da Covilhã?
R- Parece-me que se cultiva pouco o hábito de ir ao teatro, o que é estranho tendo em conta que é uma cidade de estudantes. Mas sinto que o GICC tem feito um esforço enorme para cativar público. No entanto, acho que o público daqui não é muito diferente do do resto do país devido à “aldeia global” em que vivemos e que nos faz cultivar hábitos muito semelhantes. Mas sinto um certo “fuso horário” quando me desloco ao interior.
P- Já há projectos para suceder a “Quadros do Interior”?
R- Vou fazer um espectáculo na Faculdade de Engenharia do Porto, que vai envolver professores, alunos e funcionários. Será um trabalho centrado na história da própria faculdade. Neste momento estou a ler testemunhos e a ouvir histórias, para começar brevemente a fazer improvisações com o grupo de teatro da faculdade. Acredito que o espectáculo estará pronto antes do final do ano.