Arquivo

Monstros de 2015, fantasmas de 2016

Tresler

1.O Ano Novo é o momento de fazermos a fronteira entre aquilo que queremos e aquilo que já não suportamos. O ciclo anual é ajustado aos vaivéns da vida e com a chuva e o frio dá para pararmos e nos sacudirmos. Em forma de desejo, eliminamos as nuvens negras, auguramos amanhãs a cantar, escrevemos coisas meio tontas. Em certos anos até experimentamos não mandar mensagens de boas festas, experimentando se são os outros a mandá-las primeiro. Ou no Facebook testamos os outros a ver quem gosta das mensagens que pomos. Quem gosta dos outros e não gosta de nós fica em dívida e tem mais um prego no caixão. Mas à última hora há uma ou duas surpresas: um longínquo mal-amado que teima em telefonar e dizer que está presente todos os anos ou aquela pessoa que pensávamos ter um pé atrás contra nós e que, talvez por engano, nos mandou uma mensagem calorosa.

O Ano Novo é o momento das certezas que serão ridículas daqui a pouco, o momento de pensar e dizer sozinho em voz alta “Estou farto disto.” ou “Não me vou vergar às circunstâncias.”. É o momento de estrear as agendas que começaremos com o propósito de sermos arrumados e organizados para sermos melhores mas que deixaremos vazias após o ímpeto inicial.

2.Há sinais nos telejornais que nos desanimam porque nos aprofundam a ideia de que “não há nada a fazer” em Portugal. Que as características deste país estão tão cavadas que não são capazes de dar a volta. Um candidato a presidente, Marcelo, foi entrevistado na TVI pela jornalista que com ele fazia as “conversas em família” dos domingos: dirão que ela é “assim” e “assado”, “competente e tal”, mas não haveria ninguém que pudesse manter melhor as distâncias e evitasse a familiaridade de gente que trocava presentes em direto? Clara imprudência: pareceria sempre mais uma das “conversas” de antigamente. Na realidade a entrevista resultou numa agressividade miúda da jornalista e numa contenção sofrida do entrevistado, que custaram a ver. Noutra entrevista uma candidata, Maria de Belém, fartou-se de mandar soundbytes para caçar votos: o elogio lambuzado “às forças de segurança e aos militares” (já agora aos bombeiros) vem no cardápio de qualquer candidato perto do poder. No final a revelação (hilariante) por Maria de que os hiperativos não podem ser presidentes e que o seu curso de Defesa Nacional é um trunfo decisivo para a eleição como Chefe das Forças Armadas. Antes já tinham entrado as notícias da saúde e estas fartavam-se de vergastar as administrações hospitalares e o governo “dos cortes” e de absolver os médicos funcionários públicos que se recusaram a entrar nos horários de fim-de-semana por não ganharem o que queriam, deixando as urgências sem recursos. O bastonário da Ordem dos Médicos aparece mais uma vez (trágico ou cómico?) a afivelar a sua melhor cara de pau para afastar os holofotes dos seus colegas que recusaram trabalhar ao fim de semana por dinheiro, deixando os administradores a chupar no dedo. Não aconteceu nada.

3.Os episódios relativos aos bancos e às suas “resoluções” dariam excelentes (e banais) filmes americanos. Banqueiros apanhados e negacionistas, manifestações de gente miúda enganada às portas das agências com os grossos investidores na sombra a espreitar a oportunidade, ameaças ou desabafos relativamente a suicídios, ofertas de compra a querer comprar a saldo, um governo de esquerda a não nacionalizar, a direita apanhada pela inação ao fim de tanto tempo de sonsice. E a maralha a fazer de conta que não é com ela, já que não se sente nada a menos na carteira e os ordenados até prometem subir no ano que está a começar. Mas isto é apenas a peça visível e nos bastidores continua um país que não existe, um país de foge-esconde, o reino do faz de conta, economia sem capitais a não ser de empréstimo, anos e anos a fazer autoestradas e centros comerciais para parecermos ricos.

Quase tão irreal como o reino de Simão Bacamarte, mas não tanto assim. Imaginem uma cidade do interior (esta, por exemplo) em tempos em que os doidinhos eram deixados à sua sorte, quase sempre fechados num cortelho ou num quarto escuro para não incomodarem. Surge então em nome da ciência e da humanização um médico que resolve criar um manicómio para tratar os doidinhos e proteger também a população. Ninguém contava era com o fervor deste médico que pouco a pouco interna 80% da população (internando mesmo poetas ou mentirosos) até chegar à brilhante conclusão de que, se 4 em cada 5 cidadãos estão internados como malucos, são os outros os verdadeiros malucos: os modestos, os honrados, os generosos, os arrojados, etc. E começa então a segunda fase da sua ação: libertar os supostos malucos e colocar para cura os “bons da fita”. A história acaba com estes todos curados (isto é, levando-os a cometer atos reprováveis) e como médico a concluir que, se as coisas se passaram assim, a conclusão é que será ele o único mentecapto da cidade. E interna-se a ele próprio morrendo no manicómio sozinho passados alguns anos. É “O Alienista”, do brasileiro Machado de Assis. Querem uma parábola melhor para a sociedade maluca em que vivemos? A questão é: como pegar nisto sem nos sujarmos?

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply