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1. O discurso político só existe fora da política. É um luxo de académicos e cidadãos desocupados. Na política a sério, não há discurso político. Há códigos de poder. De acesso, exclusão e conservação do poder. Que pode ser um simples emprego. Mas também a possibilidade de fazer prevalecer a ubiquidade viscosa, mas conveniente. Na política, o discurso político é o que não se diz. O que parece ser discurso político é simples praxe para neófitos, ou, mais frequentemente, pura propaganda. Só os activistas das causas e das redes sociais parecem ter um discurso político. Porém, em muitos casos, é simples gritaria. E nos restantes, não chega a ser nada. O discurso político encontra-se nas temporizações da política activa. Nas elipses. No resíduo que fica no fundo do copo. Houve um tempo em que prevaleceu o discurso NA política. Sobretudo na Antiguidade clássica. Demóstenes, Cícero, Sólon, ou Quintiliano são só exemplos maiores. Durante a Idade Média, a política ficou SEM discurso, reduzindo-se à gestão guerreira de poderes de facto. O discurso passou então para as mãos ociosas dos teólogos. Com o Renascimento, o discurso SOBRE a política passou a integrar o discurso político. E assim se manteve até à Revolução Industrial e o positivismo filosófico. A partir daí, entrou no domínio do espectáculo. Mais ainda depois da televisão e da cultura de massas. Passando a existir uma bipolaridade essencial: o discurso político passou a ser apanágio do mundo académico, think tanks e fóruns especializados. A política como que prescindiu dele, assoberbada com regulamentações, praxes administrativas, controlo da informação. Ou bloqueada por consensos artificiais. O discurso na política foi perdendo espaço, e a revolução tecnológica no último quartel do séc. XX deu o golpe final. O que existe, hoje, é simplesmente o discurso DA política. Um conjunto de códigos e algoritmos que animam um jogo aparentemente aberto, mas na realidade reservado aos detentores da palavra passe. O discurso político tornou-se uma espécie de originalidade, muitas vezes confundida com a opinião dos néscios. Mas tal conjunto de regras não assumidas e criptogramas nem por isso perdeu a sua marca ideológica. Bem pelo contrário. A ideologia, em versão transgénica e inócua, superintende na política, na economia e na cultura. Nestas circunstâncias, o discurso deixou a órbita da política, que criou o seu discurso exclusivo. O mesmo é dizer, a sua linguagem. A propósito, na RTP Memória, passou a extraordinária intervenção de Jorge de Sena, durante as cerimónias do 10 de Junho de 1977, na Guarda. Uma oratória calorosa, destemida, sem hiatos ou ambiguidades. Comparo esta generosidade, este fulgor, esta recusa em ficar a assistir, com o discurso político de hoje. À base de slogan vazios, que nem sequer persuadem. Antes enrodilham e fazem tropeçar os incautos. Só existem porque o vazio é demasiado tenebroso e não dá votos. Ou, se dá, são sempre menos do que os trazidos pelo mais velho truque da política (e das religiões): accionar a linguagem binária espera /esperança. O milagre é garantido. Não interessa mostrar a realidade, mas pintá-la de negro e propor uma ficção em alternativa. É possível que, na verdade, aos destinatários da mensagem ‘politica’ não apeteça verem a sua imagem reflectida num espelho. Mas certo é que, aos estrategas que as produzem, esse espelho também não serve. A solução é óbvia. Apresentam a realidade como num programa de TV, onde os espectadores podem escolher o desenlace: um final trágico, a preto e branco, ou um happy end colorido. Ou seja, uma realidade alternativa, mutante, mas sempre ficcionada, para maior eficácia da mensagem. E nesse pacote, tanto cabe o discurso redondo, como a promessa do Eldorado; os números da catástrofe, como as imagens que se devoram a si próprias e excluem a própria possibilidade de um discurso. Mas o discurso é tão necessário agora como o era há 2000 anos, quando se alcança o mundo onde os processos da luta pelo poder se travam e se decidem. Porque os apetites, as paixões, a resiliência, a fragilidade, as virtudes ou a falta delas, se impõe de outra forma e com outra intensidade. E nesse palco, não se pode contar com a benevolência do público, a misericórdia dos adversários, a lealdade dos companheiros, ou a gratidão de qualquer um deles. E nesse ponto, só há duas atitudes possíveis. Ou tocar de acordo com o compasso. Ou ser o seu contraponto. Porém, esse tempo suplementar, se obriga a um cuidado extra, enriquece a composição musical. É um tempo solto, difícil de captar. Pois só se dá a conhecer no intervalo dos tempos canónicos. No segundo caso, o interesse é estar na política, ou bem perto. No primeiro, é sumir-se nela. Permanentemente.

2. A maioria de nós cresceu para a vida alimentado por uma série de ideias feitas. Ordenadas e aceites de forma misteriosa. E que, graças à mentira que propagam, mais tarde é difícil desmontar. Uma delas é que há várias esquerdas. E, do outro lado, uma direita no essencial unida. Nada tão falso. Há tantas direitas quanto as agendas, a maior ou menor proximidade do poder, o grau de (i) literacia, a maior ou menor ligação a interesses económicos, o tradicionalismo, o apego ao risco, ou à dúvida permitirem. E pode haver combinações surpreendentes. O libertário pode estar mais perto do aristocrata do que do tradicionalista. O plutocrata gosta de devotos, não de colaboradores livres. O ideólogo sente-se mais confortável com um opositor do que com um tecnocrata. Um oligarca é sempre um oligarca. E o poder é sempre o poder.

3. Aquele sonho de estudante pobre. Uma pequena biblioteca. Uma bicicleta. Trabalhos ocasionais. Solidão a curto prazo. Muitos sonhos para enganar a fome. Muitas noites cheias. Muitas paixões irrequietas e amores perenes. Um pequeno príncipe cenobita. Às vezes, hóspede do deserto. Outras, servo da boémia.

Por: António Godinho Gil

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