1. As recentes alterações ao Código do Trabalho só pecam por tardias. Acabaram-se com algumas aberrações que, em vez de defenderem a criação de emprego, oneravam os custos unitários do factor trabalho, dificultavam a contratação, aumentavam a precariedade, emperravam a mobilidade do mercado de trabalho e criavam desigualdades contratuais inadmissíveis para quem desempenhava exactamente as mesmas funções… Na minha vida profissional, deparei-me mais do que uma vez com o seguinte: se um gerente de um pequeno estabelecimento comercial ou do sector da restauração e drasticamente diminuído o volume de negócios e pretende despedir um funcionário, simplesmente porque não há trabalho para ele, espera-o um longo calvário. Vejamos: teria que fazer uma série de comunicações prévias ao sindicato respectivo e à IGT; teria que promover um procedimento formal justificativo da extinção do posto de trabalho que só com o aval dessas entidades seria validado. E last but not the least, teria que pagar uma choruda indemnização ao trabalhador, proporcional ao tempo de serviço. Sem qualquer possibilidade de negociação. Ou seja, uma autêntica cláusula penal, indisponível, imposta por uma legislação que transfere o ónus da protecção social do desemprego para entidades privadas. Conheci alguns casos onde a gerência desses pequenos estabelecimentos, confrontada com indemnizações inversamente proporcionais ao seu prejuízo de exploração, teve que optar pela insolvência, com o estigma que isso acarreta. E sem possibilidade sequer de recorrer à figura da exoneração do seu passivo. Uma figura prevista na lei unicamente para as pessoas singulares e que consiste na sujeição, durante um período de 5 anos, ao pagamento aos credores, na medida do rendimento disponível, findos os quais esse passivo fica exonerado, ainda que as dívidas não estejam integralmente saldadas. Ou então, recorrer ao encerramento da actividade e ao pagamento dos créditos laborais em géneros, com bens do próprio estabelecimento. Estou certo de que, com esta reforma, estas situações pertencerão ao passado.
2. Uma das características principais dos mistificadores, muitas vezes confundidos com os sonhadores, é quererem, à força, ver nas coisas o que lá não está, nem nunca estará. Arrastando os outros nessa vertigem. Muitas vezes o engano só serve para a composição da paz interior, para o sossego da própria mente. As consequências do facto, comprovadas pela História, são devastadoras. Pelo contrário, os verdadeiros sonhadores, um pouco como os piratas, são terrivelmente pragmáticos. Ou seja, distinguem-se por verem nas coisas o que já lá está, mas os outros ainda não viram. “Roubando” descaradamente a percepção aos que os rodeiam, para depois distribuir o saque e repartir a ambição. Todavia, se nessa matéria estamos conversados, noutro desiderato contíguo é mais difícil a arrumação. Refiro-me à tendência para vermos nos outros qualidade e atributos que não têm. Justamente para ilustrar um tese ou rendilhar uma mentira útil. Só conheço uma coisa ainda mais nociva: conseguir ver nesses outros unicamente os seus defeitos e limitações imaginários, mas não descortinar os reais.
3. “A minha terrinha é a melhorzinha do mundo!” É tudo bom, não há maus rapazes, tudo boa gente” Se isto não é o centro de tudo, atrevam-se a desmentir-me!” Este é o subtexto de uma atitude caricata que costumo observar de passagem nas redes sociais. Uma forma de provincianismo exaltado, demencial, sem o mais elementar sentido das proporções. Que faz de qualquer lugarejo que mal se nota no mapa uma potencial oitava maravilha.
Aquele amanhecer foi mesmo penoso. De bom, só havia a reconfortante vaga canora dos pássaros. O ruído de fundo da eternidade. Podia ser. Essa de que o tempo é a imagem móvel. Poesia pura, o melhor de Platão. Mas pronto, devia andar sempre com um bloco de notas directamente ligado às impressões sem data. Ao fulgor de certas paisagens que nunca existiram, porque demasiado reais. Todavia, estão ali, com uma luz impossível, ao alcance de uma lágrima, de uma pequena obscuridade lançada pelo desejo. Mas acontece que essa rudimentar tecnologia poética só aparece na medida em que nada se espere dela, pois nada garante. A não ser, talvez, o sobressalto de não saber o que se pode deixar para trás.
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia