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Merkel em Gdansk

Theatrum Mundi

Jogava-se a segunda parte do Alemanha – Grécia na antiga Danzig alemã, os germânicos controlavam o jogo e venciam por 1–0, mas eis que um passe longo isola Sapingidis na ala direita do ataque grego, este centra para a área alemã onde Samaras se desembaraça de Boateng e remata para a baliza, batendo Manuel Neuer. Aos 55 minutos da segunda parte o marcador está agora empatado, a Grécia tinha feito aquilo que sabe fazer melhor — aproveitar as pouquíssimas oportunidades de que dispõe em cada jogo — e por minutos conseguia instalar a incerteza quanto ao desenlace desta partida dos quartos-de-final do Euro 2012. Conseguiriam os gregos aguentar a carga germânica mais meia hora e voltar a apanhar em contra-pé a defesa contrária? Seria possível a bola voltar a pingar para a área alemã e encontrar o pé ou a cabeça providenciais de um Salpingidis, Samaras ou Karagounis? Conseguiria a Grécia eliminar a poderosa e mais que favorita Alemanha? Muitos torcedores gregos presentes no estádio de Gdansk empunhavam capacetes espartanos, como que relembrando duelos ancestrais e querendo acreditar na vitória improvável de um David contra Golias. Haviam pintado na cara a cruz e as riscas azuis e brancas da dignidade grega e ansiavam pelo favor dos deuses. Mas com os olhos postos na chanceler Merkel, sentada na tribuna VIP, temiam o pior.

Animados da bancada VIP pela chanceler Merkel, os jogadores germânicos acordam e reagem ao golo do grego Samaras. Enquanto esbraceja, a chanceler antecipa duelos que virão com outro Samaras e os movimentos da pequena senhora denunciam o entesamento face às condições do resgate grego, aos eurobonds, às funções do BCE ou às garantias estatais do resgate aos bancos espanhóis. Nada disto se jogava no relvado de Gdansk, mas nem sequer a chanceler Merkel quer arriscar um milímetro do prestígio e do favoritismo alemães. É o Euro do futebol mas bem poderia ser o Euro da moeda única. E eis que no relvado de Gdansk a Alemanha carrega e os gregos não conseguem aguentar a pressão. Aos 61 minutos, Khedira desmarca-se na área grega e com um remate de primeira desfaz finalmente o empate. Pouco a pouco o marcador vai-se alterando: 2–1, 3–1, 4–1… Nas bancadas, os espartanos meio despidos, de feições ampliadas pelas câmaras da UEFA, esboçam preocupação e não param de assobiar na direção da chanceler Merkel a cada novo golo. Da incerteza do resultado passa-se rapidamente à possibilidade da goleada. A débâcle grega já é uma realidade e ainda faltam 15 minutos para o final da partida. O resultado é pesado mas ainda há tempo para se agravar, quase parece a evolução do spread da dívida grega face à alemã, que não para de aumentar. Não seria de admirar se os mercados reagissem com pânico a esta derrota, baixando o rating dos bancos gregos, das cidades gregas e até do Partenon, ou se a troika exigisse mais medidas de ajustamento para compensar. Afinal, o futebol é ou não é um barómetro fiel das condições sociais e políticas? Quase ao cair do pano, Boateng interceta a bola com a mão na área alemã e provoca uma grande penalidade. Salpingidis marca e estabelece o 4–2 final. A goleada atenua-se mas o resultado é inequívoco. Na tribuna VIP, a chanceler Merkel exulta mas, face aos media, contém-se e declara que a Alemanha foi apenas ligeiramente superior à Grécia. No seu íntimo porém, sabe que a normalidade foi reposta, que o prestígio alemão está intacto e que a Europa foi salva, por agora, dos bárbaros desordeiros do Sul que não pagam, nem dívidas nem impostos. Por detrás do seu contentamento, a chanceler Merkel sabe que não vai ser fácil vencê-los a todos e levar por fim a melhor sobre o Sul. Foi por isso que prometeu estar presente nos campos da Polónia e da Ucrânia, como uma espécie de número 12, o trunfo supremo da seleção alemã.

A chanceler Merkel é uma guerreira empedernida e incansável. Depois das celebrações da vitória sobre os gregos apanha o avião com destino a Roma e prepara-se para mais um embate. Desta vez não se trata de futebol, mas o desafio não é menos exigente. Deve encontrar-se com Monti, Hollande e Rajoy para negociar um plano de 130 mil milhões de euros de estímulo à economia do continente. Atravessando a Europa a caminho de Roma, enquanto olha, pela janela do avião, para o fundo da noite europeia, a chanceler Merkel abana a cabeça em sinal de reprovação e pondera: «Quando será que vão aprender que têm que arrumar a casa e que o dinheiro da Alemanha não salvará o Euro?»

Por: Marcos Farias Ferreira

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