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Mentiras

Imaginemos, por um momento, um mundo em que a mentira fosse um hábito tão comum que não houvesse palavra para a designar. E tão irrelevante que seria sempre impune. O que se dissesse, ou escrevesse, não tinha de ter qualquer relação com a realidade e podia-se, por isso, dizer fosse o que fosse sem qualquer problema ou consequência. Expressões como “vou pagar amanhã”, “vamos reunir às cinco”, “vi o acidente e o carro amarelo não parou no stop”, “amo-te”, teriam um valor facial, e real, perto do zero. Num mundo desses poderíamos mentir à vontade sempre que fosse preciso e, à primeira vista, alcançaríamos com muito mais facilidade os nossos objectivos. Mas se eu disser num mundo desses “empresta-me mil euros que eu pago amanhã”, qual a probabilidade que eu tenho de receber efectivamente os mil euros? O mais certo é ouvir uma resposta como “vem ter comigo daqui a uma hora que já te dou o dinheiro”, valendo essa resposta o valor que qualquer mentiroso lhe quiser dar.

Nesse mundo, felizmente imaginário, não haveria julgamentos. Uma vez que todas as testemunhas iriam mentir e todos os documentos seriam falsificados, não haveria qualquer vantagem na procura e interpretação das provas. Desta simples constatação à total impunidade de todos os criminosos iria apenas um passo. A lei do mais forte seria a única vigente, mas também com graves problemas para os mais fortes. Ninguém, nem os poderosos, poderia confiar num diagnóstico médico, numa previsão meteorológica, no regular funcionamento de qualquer instituição, na fiabilidade das instruções das máquinas, nos programas de computador, nas notícias, nos extractos bancários, nas apólices de seguro, nos contratos, nas teses universitárias, no ensino em geral. Chegaríamos a um ponto, finalmente, em que não teríamos qualquer segurança sobre a identidade de quem nos pôs no mundo ou sobre o nosso próprio nome, ou sobre quanto é dois mais dois.

Mentir, numa palavra, é errado. Não se deve mentir. Por detrás da maior parte dos nossos problemas estão mentiras. Um mundo em que a mentira tenha curso demasiado fácil é insuportável. É obrigação de todos nós educar os nossos filhos na verdade e na negação absoluta e em qualquer circunstância da mentira.

É geralmente aceite ser insuportável a mentira em árbitros, médicos, contabilistas, juízes, professores, cientistas e todos aqueles em que o produto do seu trabalho seja tão importante que uma falha na credibilidade daquilo que dizem não pode aceitar-se.

E os políticos? É aceitável um político jurar hoje que não sobe impostos e subi-los amanhã? Qual a diferença entre isto e um médico, sabedor do estado das nossas artérias, dizer-nos que podemos continuar a empanturrar-nos de manteiga?

Só tenho uma resposta para isto: perdemos de tal maneira o respeito por nós próprios e pelo nosso país, que já nada interessa, nem estes políticos que mandam nem aqueles que querem mandar na sua vez.

Por: António Ferreira

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