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Mas quem será o profeta da sardinha?

No estabelecimento da Sagrada Aliança entre Deus e o povo de Israel, Moisés foi instruído para que se comemorassem sete festas durante o ano, começando na Páscoa, passando pelo Pentecostes e terminando numa festa de oito dias chamada dos Tabernáculos.

Numa arriscada exegese do Levítico, este jornal decidiu instituir uma oitava festa, a “Sardinhada d’O Interior”, festa que ficou esquecida pelo profeta num cabaz de petinga um dia que terá ficado deslumbrado a ver o pôr-do-sol no deserto. A escolha do sábado para a realização desta festa sagrada deveu-se à leitura do texto em Levítico 23:3 e Êxodo 20:8-10. “Trabalharás seis dias e descansarás ao sábado”. No entanto, a interpretação não foi absolutamente literal porque a preparação da festa exigiu a execução de algumas atividades que podem ser consideradas trabalho por rabinos radicais e sindicalistas, uma vez que nem as sardinhas se viravam sozinhas nem os pimentos se dividiam ao meio de forma espontânea.

A praia fluvial escolhida para as celebrações, com as árvores em volta e um curso de água ao fundo, foi inspirada no célebre quadro oitocentista “O piquenique no bosque – Le déjeuner sur l’herbe”. É a vida que imita a arte. No entanto, para anular esta citação de Oscar Wilde e contrariar o que sucede na obra de Manet, todas as pessoas mantiveram a roupa durante a refeição.

Durkheim explicou que as festas são momentos de exaltação e comunhão, são momentos que produzem um efeito de efervescência, embora este possa também ser alcançado através da ingestão de bebidas gaseificadas. As festas, escreveu ainda o sociólogo francês, ressaltam a importância da distração da vida quotidiana, como quando um jornalista ataca o lombo de uma sardinha com a mesma gana com que ataca a cabeça de um ministro. Com a vantagem de que aqueles peixes, por serem pequenos, não pressionam nem ameaçam. E ainda que o fizessem, nem a ERC se deixaria intimidar. Para os reguladores, todo o peixe mais pequeno que espadarte é chicharro.

Para os interessados, a ementa do repasto não se limitou a peixe de mar, também houve peixe de aviário – conhecido no seu habitat por frango – e fatias de um peixe de pocilga – designado pelos entendidos como entremeada. Foi desta forma, numa frugalidade piscícola que “O Interior” juntou à mesa colaboradores, amigos e familiares – familiares dos colaboradores, note-se, não do jornal.

A seleção musical que acompanhou a preparação da refeição foi cuidadosamente elaborada com recurso aos êxitos mais contemporâneos do nacional-cançonetismo. A exclusão do repertório lamecha-badalhoco de Graciano Saga foi compensada com a especial incidência nas repetições da fórmula “Mas quem será a pessoa que tem determinado grau de parentesco com a criança?”, repetindo vezes sem conta as duas dezenas de versões possíveis, produzindo simultaneamente dois efeitos: o efeito iterativo teorizado por Umberto Eco e um efeito de eco que transforma os pavilhões auditivos em carros da CGTP.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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