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Mar de pedras

6 de Maio

No outro dia, um sujeito bem instalado na vida, com contas catitas nos bancos e notas gordas na carteira, dizia, alto e bom som, quando lhe chamaram a atenção que agora a expressão da pobreza e do abandono alastrava transversalmente, na sociedade portuguesa, que Deus nosso Senhor criara o mundo com ricos e pobres e sempre os havia de haver. Portanto, dizia ele, não valia a pena amplificar os dramas que os olhos descobrem à flor das ruas, nem adiantava virem com as estatísticas dos milhares de crianças que passam fome e chegam às escolas com a barriga a dar horas. O senhor bem instalado na vida foi decerto almoçar lautamente, mas em poucos quadrados de passeio, entre um banco e uma farmácia, estava uma mulher, curvada sobre si, de forma a que os olhos não encarassem os outros, com as palmas da mão abertas, pedindo, sem o dizer, qualquer coisinha para matar a fome. Percebia-se que era um mulher frágil, de vida desfeita, uma daquelas pessoas que são colocadas à margem porque no reino que Deus criou “sempre houve e haverá ricos e pobres”.

Penso que nunca, como hoje, as desigualdades se acentuaram tanto, que os condenados da terra se multiplicaram numa escala sem medida. Todos conhecemos, de alguma forma, casos particulares dessa realidade, todos sabemos da doença letal de uma sociedade que encara cidadãos como objectos descartáveis, todos vemos como essa margem social se agudiza nos comportamentos e na inquietação avulsa que corre pelas ruas.

Quando me cruzo com casos desses, lembro-me sempre dos versos de Jorge de Sena, no Mar de Pedras:

Nunca vos falaram

como a filhos,

nunca vos pagaram

como a homens,

nunca vos trataram

como a amigos

Retirado de “Crónica do País Relativo – Portugal, Minha Questão – Volume II”

Fernando Paulouro Neves

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