Arquivo

Luz e sombra na cara de um preso

Tresler

Quando um preso foge e aparece nas notícias apodado de “perigoso” ficamos muitas vezes a apreciar a sua catadura para ver se nele há qualquer coisa que o identifique logo como criminoso, isto é, se a sua cara nos diz qualquer coisa sobre o seu íntimo e o seu caráter antissocial. Muitas vezes a fotografia oficial de presidiário, na sua nudez de decoração e na sua pose de recuo reativo, apresenta um homem acossado, de olhar vago e de certo modo perdido, ou, pelo contrário, firme na sua pertinácia de recusa da ordem social. É isso aliás que pensam os especialistas atuais da fotografia, considerando pouco digna esta maneira “desnudada” de fotografar, que seria mesmo aviltante da pessoa humana.

Há dias numa visita à Casa de Camilo em S. Miguel de Seide, surpreendeu-me no Centro de Exposições uma Exposição de Fotografia com as caras dos presos da Cadeia da Relação do Porto (atual Centro Português de Fotografia) há cerca de cem anos, presos da mesma cadeia onde Camilo Castelo Branco passara cerca de um ano a aguardar julgamento por adultério. Aquelas caras, a olhar para nós a cada passo que damos na Exposição, ainda hoje olham para mim, claramente construídas pelo olhar de quem as fotografou e desumanizou, ali amarfanhadas e despojadas. E, se é a máquina que faz a fotografia, é difícil nós revermo-nos naquelas fisionomias que nos parecem tão diferentes dos traços de uma cara do séc. XXI. O uso da fotografia nos fins do séc. XIX como memória da entrada dos presos num estabelecimento levou também à fixação de um tipo fisionómico do prisioneiro (teorizado por Cesare Lombroso): queixo recuado, grandes maxilares, cérebro pequeno e órbitas enormes. Como se no desenho da cara de alguém pudesse já estar desenhado o seu destino.

Por seu lado, no Centro Português de Fotografia, encontramos uma Exposição sobre “As mulheres de Camilo”, desde a mãe que ele quase não conheceu, até ao seu definitivo amor, Ana Plácido. Foi esta que o levou, por adultério definitivamente não provado em tribunal, primeiro à fuga durante meses e depois à prisão onde se entregou, esgotada a paciência de fugir à justiça. Desse tempo resultaram as “Memórias do Cárcere”, que agora li, motivado pelos 150 anos da sua edição (e também do “Amor de Perdição”) e ainda pelos 100 anos da morte de Ana Plácido.

E que mundo este da prisão de Camilo! Camilo opta por falar pouco de si próprio e do “seu caso”, contando os casos dos outros prisioneiros. Mas o que mais surpreende nestas histórias é a facilidade com que alguém era metido na prisão por muitos anos ou mesmo condenado ao degredo. E como era difícil lutar pela presunção de inocência quando alguém poderoso acusava e inculpava ou quando o preconceito popular criava as condições para um respaldo social a uma condenação mal provada. E como os corredores da prisão eram cenários de novos crimes, de cenas de ciúmes e morte, de novos casos a mostrar que a vida de alguém não para quando o ferrolho da cela se fecha. Curiosa também a condição deste preso “especial”, Camilo, encerrado na prisão mas em situação de algum privilégio, que lhe dava condições para escrever e muitas vezes para servir de confidente ou consolo espiritual dos outros presos. E mesmo para receber a visita do rei D. Pedro V, seu admirador.

De entre as histórias dos presos, que muitas vezes escolhiam Camilo para afiançar a sua inocência, grande parte são histórias de desgraças e mortes em momentos de descontrole emocional, de fugas por montes e vales, de luta por uma verdade que nunca conseguiriam provar. Ou de bandidos temidos como o José do Telhado, que Camilo adotou como aliado e colega de conversa e que se afirmara como um implacável bandoleiro. Deixo todos esses episódios para as vossas leituras mas permito-me resumir uma das raras histórias em que as coisas acabam bem, história contada em segunda mão a Camilo. Um tenente do exército, de apelido Salazar, foi condenado no início do século XIX por jacobinismo, acusação ideológica do mais abjeto à época, sinónimo de gente que odiava o poder e o altar. Da janela da Cadeia da Relação do Porto, enquanto aguardava os 15 anos de degredo que lhe haviam destinado, encantou-se pela sobrinha do cónego Barreto (Rosa), que lhe correspondeu. Perante a mudança do preso para Almeida, por instâncias do cónego, para impedir o seu namoro, aquilo que era amor tornou-se obsessão e fervor, mesmo sabendo que a sua felicidade teria que ser realizada no degredo. Mas a teimosia do cónego não deixava avançar nada. Até que, por uma indigestão de lagosta (!!!) o cónego morreu. Nesse momento, para Rosa, o degredo já não era suficiente. Casaram na prisão e, pedido o perdão à corte, este não foi concedido. Rosa não hesitou. Em tempo em que a corte de D. João VI estava no Brasil, embarcou para o Novo Mundo com uma carta do chanceler para pedir ao rei perdão para seu marido. Quatro meses depois, regressava a esposa com o perdão concedido e encontrou o marido jacobino na cela a rezar (sim, estão a ler bem), à beira da loucura. O reencontro acalmou Salazar e seguiram-se, como nos contos de fadas, 25 anos de felicidade em liberdade.

Na sala da Cadeia da Relação do Porto que recorda a história daquele edifício e a gente mais ou menos importante que por lá passou, com destaque para Camilo, e se analisam as poses dos presos, fica a interpelar-nos a cara daquela miúda de treze anos presa por “venda de phósphoros (produção clandestina)”. O fotógrafo neste caso não conseguiu desmanchar ou enxovalhar a inocência de uma rapariga presa por ganhar a vida desta maneira tão ilegal. Ela ali está quase igual a si própria.

(Exposição “Murmúrios do Tempo” até 24 de junho na Casa de Camilo em S. Miguel de Seide; Exposição “Mulheres de Camilo” até 24 de Junho no Centro Português de Fotografia do Porto; Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, Porto Editora, Porto, 2004, com posfácio do guardense João Bigotte Chorão)

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply