Esta semana fui abordado por uma senhora mais velha que a idade da reforma proposta pelo governo para comprar o Almanaque de Santa Zita para 2006. A senhora pediu-me 1 € pelo pequeno livro, mas não me devolveu o troco da moeda de 2 € que eu lhe dei. Por 2 € eu quereria não um almanaque de uma santazita, mas no mínimo um compêndio de uma santazona. Mas adiante.
O almanaque é uma espécie de revista de pequeno formato – no fundo, uma revista-zita – com 52 páginas com imensa informação para 2006. E dizem que a Igreja Católico não tem os olhos postos no futuro. Ainda não acabou a primeira metade de 2005, já os fiéis andam a distribuir livros sobre 2006. O subtítulo da brochura é Almanaque da Família. Presume-se portanto que a leitura desta magnífica obra esteja interdita a uniões de facto e casais homossexuais, pais divorciados ou mesmo a solteiros empedernidos que só visitam igrejas nos dias dos casamentos dos irmãos e dos baptizados dos sobrinhos e mesmo assim chegam atrasados – e estou a falar em abstracto.
Ainda assim, como paguei pelo almanaque o dobro do preço de capa, vou aplicar os duzentos paus (um euro, para os que não se lembram do que eram “200 paus”) na elaboração do artigo desta semana, necessitado que andava de alguma incursão pelo mundo da crítica literária.
O Almanaque de Santa Zita começa, na página 2, por nos apresentar um belo poema de Deolinda Araújo – pseudónimo na linha de Adília Lopes – com quadras rimadas em A-B-C-B, em que Esperança rima com Confiança (assim mesmo, com maiúscula), história com memória, solidário com vário, e na melhor rima do poema, bonita com Santa Zita. Não só existe melodia na rima como uma aproximação denotativa dos conceitos rimados. Camões, por exemplo, não era tão semiótico.
Ao longo de todo o livrinho aparecem citações de Monsenhor Joaquim Alves Brás, grande pensador, como os dois apelidos deixam imediatamente antever, e fundador da Obra de Santa Zita. Vários pensamentos são filosoficamente discutíveis, outros são apenas cómicos. Na página 4, aparece o seu primeiro legado. “O trabalho é uma grande alegria e uma grande riqueza. É alegria porque ocupa a pessoa toda, ao contrário da ociosidade…” Primeiro, é notório que Mons. Brás se perdia nas conversas, já que não há nenhuma explicação para o trabalho ser afinal uma grande riqueza. Segundo, há um claro erro nesta formulação. Poucos trabalhos exigem das pessoas que trabalhem com o corpo todo. Nos poucos casos em que isso sucede, as ordens religiosas não costumam aprovar esse tipo de trabalho. Já nas alturas de ócio, a pessoa está toda ocupada a descansar. Não há registos de pessoas que estejam a descansar menos o mindinho direito ou com intermitências de vontade de trabalhar do fémur.
O teólogo Brás tem momentos de contorcionismo fenomenológico arrepiantes. Na página 16, aparece “Não há melhor meio de pregar a cruz do que estar pregado nela.” Há aqui uma intencionalidade paradoxal, uma imagética típica de Escher sobre a crucificação para conduzir o crente ao pensamento meta-pregador, isto é, um pregador é aquele que prega os pregos da sua própria cruz.
Um almanaque que se preze não vive só de frases muito bem esgalhadas por senhores padres (também tem do Papa, como veremos para a semana) e de poemas de fino recorte. Tem também anedotas que provocam tanto riso quanto as de Fernando Rocha se não tivessem asneiradas e receitas culinárias. Na página 23 encontramos receitas de medalhões de tamboril, de creme de alho francês e da vida, três pratos indispensáveis à boa mesa portuguesa.
(continua, que o almanaque tem sumo e o Verão é comprido)
Por: Nuno Amaral Jerónimo