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Literatura de cabeceira

observatório de ornitorrincos

Todos os anos, por alturas da Páscoa, resolvo abandonar o lar – se é que se pode chamar lar ao armazém de papel onde moro e que toda a minha família designa carinhosamente por “esta pocilga”. Desde há alguns anos, instalo-me em casa da minha irmã durante uns dias, que foram este ano gloriosamente transformados numa semana inteira. Aqui chegados, os leitores sabem já que eu tenho uma casa com imenso papel não discriminado, de livros a rolos de papel de cozinha, que tenho uma irmã que por sua vez tem uma casa e que há uma altura chamada Páscoa durante a qual estou em intenso regime de preparação de aulas e leituras para o doutoramento, o que é descrito por muitos – injustamente, até – como “não fazer absolutamente nenhum”.

Uma semana em casa da minha irmã implica alguns sacrifícios dignos da época pascal, mesmo para mim, um agnóstico sem fé. Exemplos dessa penitência são os gritos da minha sobrinha logo pela manhã e o regime talibânico de silêncio imposto depois das 21.30, a ausência de ligação à internet e a impossibilidade de verificar as actualizações constantes de fotografias de corpo inteiro de raparigas do mundo inteiro e a ausência de livros que eu nunca tenha lido.

Nessa casa, os leitores já o perceberam, habita um pequeno ser, menos peludo que um hobbit e mais estridente que Júlia Pinheiro, que tem dois passatempos principais: fazer o contrário do que lhe dizem e ficar doente. Na realidade, o passatempo envolve também a minha referida irmã e mãezinha da criatura, e toda uma posologia calculada e estudada ao pormenor, prevendo cada efeito e antecipando cada recaída. Sem falsas modéstias diria que a minha irmã é o José Mourinho da pediatria.

Nas mesmas estantes onde antes se encontravam volumes espessos de livros, hoje há medicamentos. Onde havia Walter Benjamin, ali existe Ben-u-ron; em vez de Kureishi ou Murakami, Elocom e Enalapril. Que, tanto quanto sei, podiam também ser dois escritores letões do romantismo tardio. Não deve ser por acaso que aos pequenos folhetos que acompanham os xaropes, pomadas e comprimidos também se dá o nome de literatura. Há inclusivamente medicamentos com reformulações de períodos estéticos anteriores. Depois do neo-realismo de Manuel Tiago, os portugueses preferem agora o Neostil e trocaram o neoclássico pela Neo-sinefrina. Foi assim que reuni ao acaso cinco obras da literatura farmacêutica que ali estavam à vista e decidi fazer para os leitores do Interior o mesmo que João Pedro George fez com os livros da escritora que é marca registada – não é destruí-los, é lê-los.

George, um sociólogo, descobriu parágrafos completamente iguais de uns livros para os outros da famosa autora. Muito provavelmente, a romancista Pinto baseou a sua carreira precisamente nos folhetos medicinais. Em todos os panfletos as perguntas se repetem, como se de um guião predefinido e construído sobre uma grelha narrativa sempre igual.

Tal como Os Maias, estes folhetos começam com descrições alongadas e pormenorizadas da realidade física. No caso, a contagem e a delineação dos produtos medicinais. Segue-se, invariavelmente, uma enumeração das utilizações possíveis, com o recurso a palavras que Mário de Sá-Carneiro poderia muito bem ter usado nos seus poemas (como por exemplo, “dismenorreia”, “hiperégicas” ou “antipruriginosas”). Nesta altura fica-se com a sensação de que escritores (ou para ser mais exacto, pessoas que escrevem frases e depois as publicam) como Richard Bach ou Paulo Coelho vieram também à literatura médica beber alguma da sua inspiração. Os seus livros não passam de receitas com terapias, contra-indicações e efeitos secundários.

Admiro particularmente o capítulo, também ele plagiado de panfleto para panfleto, das interacções medicamentosas. No fundo, uma espécie de jogo literário com o leitor, como se Kindera citasse García Marquez ou Lobo Antunes nos lesse James Joyce. Há, neste mundo dos medicamentos, uma escola literária que urge conhecer e estudar.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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