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Ler o telejornal

Tresler

Ver um telejornal, como um conjunto de pequenas histórias para grande público, supõe os mesmos cuidados do leitor ao ler um livro de contos ou na roda de amigos a ouvir os pequenos chistes diários. Com um conto aumenta-se um ponto, suprime-se um pormenor, talvez importante ou caricato, carrega-se nas cores aqui e ali, conta-se, às vezes sem vontade, as histórias que outro nos relatou. E conta-se mesmo, por interesse ou subserviência, aquilo que é o interesse de uma fação. O telejornal, como a conversa corrente, tem a vantagem / inconveniente de ter uma cara familiar a credibilizar a narrativa. Assim, a imagem que nos prende e o olhar que nos subjuga no telejornal e a partir de certa altura o nome do pivô condicionam-nos de maneira muito limitadora. Quem conhece por exemplo o nome dos jornalistas que ouve na rádio?

Aquilo que nos habituámos a admirar como verticalidade de um profissional do jornalismo revela-se muitas vezes uma realidade mais plástica do que alguma vez imaginávamos. Por exemplo, Judite Sousa e José Alberto de Carvalho tornaram-se irreconhecíveis após a passagem para a TVI, tanto a nova estação os enformou na sua linha de jornalismo “popular”. Se eles mudaram um pouco a estação, a estação mudou-os mais a eles. Se é verdade que não são os pivôs que fazem as notícias, ver um telejornal de sensações fortes e um sem-número de pequenos conflitos dirigido por Judite Sousa não cai bem. Vê-la assinar o que de pior tem a TVI dói: o “parti pris” no caso do tribunal de Lousada com as reportagens quase “em exclusivo” da mãe queixosa e os juízos descarados sobre o arguido; as reportagens sobre qualquer bocejo de Cristiano Ronaldo; as notícias “publicitárias” a milhentos artistas de telenovela que, a propósito de um pequeno nada que fazem, são vedetas de notícia também; e finalmente vê-la a ela a interromper repetidas vezes certos entrevistados de maneira a obter a resposta mais picante.

Quando a mudança de clube dos pivôs milionários nos surpreende, a manutenção sem renovação da sua marca também nos indispõe ou simplesmente deixa-nos já sem reação. José Rodrigues dos Santos já não se salva, numa pose que parece ter séculos, olho pronto a piscar às milhentas admiradoras, sempre disposto a vestir o colete de repórter de guerra para promover a imagem ou a dar a opinião como especialista de não se sabe o quê.

Os diretos são outra dose de sensacionalismo evitável: tudo o que já está dito e redito exige um direto, tanta vez para repetir as mesmas coisas que já ouvimos. Os diretos das conferências de imprensa não passam sem a filmagem a dois metros da mesa dos entrevistados, com estes muitas vezes a ser incomodados pelas televisões e a terem que sobrepor a sua voz. E quantas vezes acabámos de ouvir a informação e o jornalista, para dizer o nome da sua estação ou para justificar o seu lugar de estagiário, pede ao entrevistado que repita o que acabou de dizer “agora em direto” para a estação tal…

E o que leva um jornalista do telejornal a considerar que algo se deve transformar em notícia? Neste campo, diga-se que certas instituições têm uma capacidade extraordinária de enviar comunicados de imprensa convincentes. É o caso dos sindicatos da GNR e da PSP e das associações militares, que cada dois dias apanhamos nas televisões a lamuriar-se em direto sobre os ordenados, as promoções, os empréstimos que não conseguem pagar, as esquadras ou as avarias das viaturas. Em outro campo, a morte de Francisco Esperança veio apagar um fogo que a imprensa teve desgosto de ver acabado: a descoberta da paternidade da neta, que continuou em muitos blogues e sítios a ser defendida pelos voyeuristas da praça “em nome da honra da menina”. Enfim, que poderemos dizer da autopromoção dos próprios programas da estação? Qual a lógica de vermos divulgado / promovido no telejornal um programa ou apresentador ao mesmo nível daquilo que se afirma naturalmente como acontecimento que se impõe como notícia a 10 milhões? Em sentido contrário, as galas de âmbito nacional de cada estação, seja na área da cultura ou do entretenimento, não são nunca divulgadas pelas estações rivais, embora se possa dizer que têm importância informativa nacional. Porque não aparece uma estação a dar o exemplo (por exemplo, a RTP)?

Há dias perguntei aos meus alunos qual o/ a apresentador(a) do telejornal que mais apreciavam. O primeiro que respondeu precipitou-se e por engano referiu o nome de Cristina Ferreira, nome da gritadeira de serviço do programa vizinho do telejornal de domingo (“A tua cara não me é estranha”). Sinais dos tempos. Fora da informação, já não nos chegava uma Júlia Pinheiro e uma Teresa Guilherme, aparece-nos agora uma Cristina “Falsete” Ferreira a atroar os ouvidos ao domingo à noite. Como se pode aguentar aqueles guinchos e risadas 5 minutos seguidos? Os meus jovens alunos encolheram os ombros: eu não percebo nada. Mas “A tua cara não me é estranha” faz mesmo milagres: ao acabar pela uma da manhã, põe metade dos meus alunos a dormir na manhã de segunda-feira.

Por: Joaquim Igreja

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