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Lagares escavados na rocha (I)

Nos Cantos do Património

O vinho foi, para as sociedades clássicas e em especial para os romanos, um produto de grande significado económico e social. Actualmente, o vinho, como a cerveja, está de tal forma enraizado nos hábitos da nossa sociedade que são poucas as ocasiões em que é dispensado. Nesta coluna tivemos já oportunidade de escrever sobre a cerveja e os cerimoniais mágico-religiosos durante quais ela era consumida. Desta vez ocupamo-nos do vinho e das evidências arqueológicas da sua produção e do cultivo da vinha na Beira Interior.

Com efeito, um dos elementos arqueológicos mais abundantes na Beira Interior relacionados com a produção do vinho é, precisamente, os lagares escavados na rocha. Conhecido, na época romana, como torcularium, o lagar podia ter um edifício rústico a servir-lhe de abrigo, construído em pedra e coberto com tegula e imbrices. Mas nem todos os lagares são da época romana como veremos. Por outro lado, não é fácil distinguir os lagares de vinho dos lagares de azeite quando os identificamos fora de contexto arqueológico.

Normalmente, este tipo de lagar é uma estrutura muito simples com três elementos básicos: um depósito de dimensões variáveis onde se esmagavam as uvas, uma pia para onde escorria o mosto e um canal de ligação entre os dois recipientes. Este sistema básico repete-se em quase todos os lagares conhecidos na região, variando apenas em alguns pormenores que não alteram em nada o esquema geral de funcionamento. Alguns lagares foram simplesmente lavrados em afloramentos graníticos elevados e não possuem pia para recepção do mosto. Possivelmente utilizava-se uma talha de cerâmica para receber o precioso líquido. Segundo Brochado de Almeida, os lagares da região do Douro integravam-se no mesmo “modelo tipo” constituído por um calcatorium, um lacus, um par de stipites, duas arbores, um prelum e um malus munido de um peso, a “pedra do lagar” no vocabulário popular. Dos lagares mais antigas apenas subsistiram os elementos em pedra como o calcatorium onde se esmagavam as uvas com os pés e o lacus que recolhia o mosto. Em alguns casos encontra-se também o peso em pedra que era fixado na extremidade do malus.

Outro tipo de lagar mais simples era constituído por uma laje de granito ou xisto onde se cavavam uns pequenos canais que convergiam para um mesmo ponto que era a “bica”. As uvas eram colocadas em cima da pedra e esmagadas à mão. O sumo escorria pelos canais em direcção a uma talha colocada debaixo da “bica”. Este tipo de lagar mais simples também servia para espremer amoras silvestres segundo nos informaram em diversas aldeias do concelho de Pinhel. Em Cidadelhe, junto a uma casa rústica encontra-se um belo exemplar deste tipo de lagareta de canais convergentes. Este “lagar” limita-se a uma laje de granito onde se escavou um sulco em V formando um círculo imperfeito, cortado por outro sulco oblíquo. Todos os sulcos convergem para a “bica”. Um lagar do mesmo tipo pode ser visto na exposição do Museu da Casa Grande de Freixo de Numão, presumivelmente encontrado em contexto romano.

Lagares de sulcos escavados em penedos graníticos encontram-se nas proximidades de Bouça Cova e da aldeia dos Prados, ambos no concelho de Pinhel. Neste caso, a lagareta conhecida pela população como a “francelha” tem os sulcos orientados para uma sepultura escavada na rocha onde o vinho era recolhido. Quer o lagar de Cidadelhe, quer o de Bouça Cova, quer ainda o dos Prados, estão relacionados com contextos arqueológicos medievais.

Num próximo texto escreveremos sobre a cronologia dos lagares escavados na rocha e da presença do vinho na Lusitânia.

Por: Manuel Sabino Perestrelo *

*perestrelo10@mail.pt

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