Quando cheguei à António Arroio – procedente desde logo de uma geração que iria celebrar em breve o desconcerto de um muro infame, mas que assistiria, impassível, ao erguer da torpe muralha do capitalismo selvático e devastador – o mito ainda estava bem presente nos corredores do famoso edifício do Alto de S. João fundado no primeiro quartel do século passado. Júlio Pomar (sem desprimor para com Mário Cesariny ou Artur Cruzeiro Seixas – que ali estudaram também) fora o mais dileto discípulo daquela pequena academia artística – numa altura em que os alunos do estabelecimento eram segregados assim que davam entrada na Escola de Belas Artes de Lisboa. Na verdade, a paulatina afirmação artística de Pomar e o rompimento com aquela universidade ajudou em muito a credibilizar de novo a velha instituição escolar batizada com o nome do seu fundador – o crítico de arte e professor António José Arroio (1856-1934). Na esteira de um certo imaginário artístico e poético – a cuja dimensão não me desobrigo de pertencer – entendia que o Júlio, mais do que precursor do neorrealismo nas expressões plásticas, fora o elo que naturalmente se estabelecera entre a pioneiríssima Geração de Orpheu e a última escola estética modernista do séc. XX. Como é sabido, a primeira obra que o futuro autor de “O almoço do trolha” vendeu fora adquirida por Almada Negreiros (1945) que a exibiu mesmo no VII Salão de Arte Moderna do SPN. Fora um gesto repleto de simbolismo, que equivaleria – depois o soubemos – a trânsito de legado, já que a intermédia geração presencista, de Régio e Torga, assumira, pese embora a relativa parcialidade da proposição, um carácter predominantemente literário. Almada reconhecia no jovem pintor mal chegado à vintena o dealbar de toda uma nova abordagem plástica: e se não fora tão revolucionária quanto a sua – nem o poderia haver sido – abalou com idêntica profundidade a sociedade portuguesa, enchendo as cadeias de resistentes ao “status quo” intelectual luso de compleição equivalente aos Dantas decadentes que o “Futurismo” tão bem soube combater no seu tempo. Na verdade, a obra de Júlio Pomar revitalizou a memória e fez recrudescer a densidade intelectiva do movimento orfeico na medida em que, não sendo ele um herdeiro cronológico sequencial daquela vaga de espiritualidade e inquietação emotiva (Pomar pertence à terceira geração do Modernismo, como se sabe), adotou-as genuinamente como referencial plástico póstumo. Muitos de nós chegámos a Orpheu através de Pomar: aquele “Retrato de Fernando Pessoa”, 1985 (Col. CML) – ou os vários exemplares gráficos que se filiam no excecional traço figurativo pomariano – foi um corredor oxigenado aberto para a fruição da plenitude desse fenómeno inigualável que foi o Orfismo. Pintei, sequentemente, creio que dois anos depois “Elegia na sombra” (Exp. Galeria d’Arte English Bar, óleo s/tela, col. José Fontão). Como uma catedral etérea aonde as colunatas se cumpliciam para nos protegerem da pequenez de nós mesmos, abria-se-nos por cada estampa centenas de páginas do universo da magnífica geração. Era conhecida a retração de Pomar ante o mais leve resquício de misticismo, mas o mestre existia, em boa verdade, na insubstancialidade do tempo. Toda a consistência material lhe era indiferente, exceto a natural e a criativa: não há aí uma dimensão transcendental? O seu arquétipo de resiliência à imposição corpórea acessória foi construindo toda uma espiritualidade que ninguém pode negar no incréu incorrigível (e tarifado).
Conheci Pomar nos jardins da Gulbenkian em 1987. Fomos apresentados por Gonçalo Ribeiro Teles, ainda hoje meu amigo e amigo do meu saudoso pai que, dentro do catolicismo oposicionista, haviam encontrado espaço para construir uma belíssima utopia de resistência, irmanando-os em inquietação humanista. Quem teve a dita de estar alguma vez sob a presença interventiva do Júlio experimentava enormes silêncios, ante o volteio meditadamente litúrgico do seu utensílio de criação. Ninguém podia pedir mais do que isso. Era suficiente a imensidão da sua obra que propendia de um universo maravilhoso e que ia ganhando forma num discurso cenográfico de silêncio e cor. Ultimamente, Júlio pintava com o olhar. Dissipava-se numa prolongada fixação de infinito. E o silêncio, agora, tornava-se quase pungente. Os seus olhos perdiam-no num mais-além no qual jamais sonhara acreditar. Obras a que a humanidade jamais terá acesso…
Pomar partiu e cá ficámos nós a meio do lindo devaneio onírico onde nos precipitou. Que enorme responsabilidade viver sem ele…. Resta-nos degustar a fecundidade de um silêncio que nos ensinou a prezar. Valha-nos ao menos isso…
Por: João Mendes Rosa