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Júlio, Bono, o FMI e nós

Ah, crianças… Aquilo eram tempos terríveis… esta juventude nem imagina. Um ministro das Finanças a exarar despacho para autorizar a saída de divisas para Júlio Iglesias cantar em Portugal nos anos 80. Acho que foi assim que aconteceu. Vá-se lá saber porquê este episódio ocorreu-me no concerto dos U2 entre o “Vertigo” e o “Mercy” quando tentava abifar mais meio metro à frente em direcção ao palco e um meia leca careca me esbugalhou os olhos como o robalo que o Bono tinha comido ao almoço obrigando-me a recuar para não haver moshada.

O Julito… Tenho aqui dois recortes do “DN” de Setembro de 83 que confirmam a anulação do concerto no Estádio do Restelo quando Teresa Ter-Minassian era a mulher mais odiada do país com o seu cabelo armado com laca e sobrancelha em arco perfeito que ainda hoje faz escola em certa ala palavrosa do PS. Nessa altura o supra-sumo do cool não era o Bono, que não passava de um puto escanzelado indy, mas sim o sempre bronzeado Júlio Iglesias. Muito poucos tinham ouvido falar de “Sunday Bloody Sunday”, mas todos conheciam “De Nina a Mujer” – título que hoje já cairia mal na boca de um playboy latino de garra afiada, mas isso é outra história.

Contudo, o cachet do romântico que nunca usou um par de peúgas era de tal forma elevado que chocava com a política de saída de divisas do país. Iglesias não podia depauperar os cofres nacionais e ele cobrava na altura 12 mil contos! Almoçava-se em família a horas e as notícias ouviam-se na rádio porque não havia emissão de TV ao almoço. Assim, foi depois da “Bola Branca” (1ª edição) na Renascença que se ficou a saber que não era permitida a saída de tantos contos de reis para o bolso das calças de linho branco de Júlio Iglesias. (Para os mais novitos, o Júlio é um tipo que parece um pedaço de couro seco ao sol e é pai do Enrique Iglesias… esse…). A minha memória diz-me que o concerto se realizou porque houve despacho do ministro Ernâni Lopes, que assim garantiu a paz social. Mas a Internet nada me diz sobre o assunto e a memória dos velhos jornalistas não guardou este episódio e a minha relação com ex-ministros das Finanças é nula e com Júlio Iglesias já não é a melhor.

Mas, em 83, não éramos todos iguais e Portugal era o mais desigual de todos. No país de Bono, o rendimento per capita era de 5.741 dólares, na terra de Júlio 4.354 dólares e no rectângulo de Ernâni e Teresa 2.616. Ah, mas quando entrássemos na CEE tudo seria diferente.

(Passaram quase 30 anos. Em Portugal, e em golfadas sucessivas, foram despejados milhões e milhões de ecus, dólares e euros nas mãos de políticos e tecnocratas e o diabo a sete).

No concerto dos U2, em Coimbra, Bono mostrou imagens das manifestações no Irão onde se lutou pela democracia no pós-eleições, viram-se vídeos de vários prémios Nobel da Paz, com destaque para a birmanesa Suu Kyi, que está em prisão domiciliária desde 1990, e soltou um longo suspiro de desalento: «Os nossos dois países estão com alguns problemas nas suas economias…» É bem verdade que qualquer dia ainda nos arriscamos a passar nas imagens caritativas dos U2. No Outono de 2010, o FMI emite regularmente comunicados a garantir que «não está a pensar intervir nem na Irlanda nem em Portugal». Tanta necessidade de negação não pode ser bom sinal.

Há alguns factos que não podemos alterar: muitos de nós elogiámos fartamente o “modelo irlandês” que está de rastos; que a situação deles não é a mesma que a nossa, pois baseia-se na necessidade de salvar bancos; que sendo um país periférico, e 30 anos depois, o rendimento per capita da Irlanda continua a ser o dobro do português (em 2010: 51.356 vs 21.408) pelo que os cortes salariais têm impactos diferentes lá e cá. E que o cantor de “Por el Amor de Una Mujer” já nem na memória das suas 6.000 namoradas vive, enquanto Bono é capaz de perdurar para além das dívidas soberanas de Portugal e da Irlanda.

Por: Luís Pedro Nunes

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