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Já é bom, mas…

Está prevista a abertura, até afinal do ano, de uma livraria Bertrand na Guarda. O novo espaço ficará alojado no Centro Comercial Vivaci, vai ter 160 m2 e disponibilizar cerca de 25 mil títulos em permanência. Até agora, só tenho lido comentários entusiásticos sobre a notícia. Embora compreenda a euforia que deles transpira, falta ainda falar do resto. E o resto é de tal forma vasto que não permite, sem mais nem menos, um alinhamento pelo coro entusiástico que tem acompanhado a boa nova. E porquê? Creio que a simples abertura da livraria não é, de todo, a panaceia universal para o acesso aos livros e para a dinamização da leitura na Guarda. É uma notícia reconfortante, mas só isso. Será pela simples acção da oferta que a procura irá aumentar? E que tipo de procura? A abertura de uma livraria na Guarda tem um impacto maior do que noutros locais, precisamente porque é a única. Mas os resultados concretos no terreno são comuns às outras. Sobretudo quando falta o principal. Ou seja: há um ano que não existe uma biblioteca pública na cidade em funcionamento. Por outro lado, o estabelecimento será simplesmente um local de venda de livros, ou terá algo mais que faça a diferença, que crie hábitos, que fixe consumidores, que proporcione algum debate público: lançamentos, presença de autores, tertúlias literárias organizadas, etc.? Quanto à localização, não ficaria muito melhor na Rua do Comércio, um espaço nobre por excelência, onde um estabelecimento deste tipo é essencial para fixar o público, em complementaridade com o comércio realmente tradicional? O que vai trazer de novo a Bertrand? Muito pouco. Graças às razões expostas. Mas também porque, quanto à variedade, pelo que tenho visto no estabelecimento congénere do Serra Shopping, os títulos disponíveis de imediato são pouco mais do que os de um escaparate de uma grande superfície. Os preços proibitivos dos livros também não ajudam. Pelo que a alternativa das compras via internet continua a ser muito apetecível: pela imensa variedade, pela facilidade, pelo preço. Se uma livraria se quiser afirmar na Guarda tem que ser muito mais do que um armazém de livros. Mesmo pertencendo ao sector privado. Seria interessante estabelecer uma comparação entre os índices de leitura antes e depois da abertura da livraria. Eu não estaria muito optimista. Por outro lado, será que alguma entidade residente, pública ou privada, se deu ao trabalho de elaborar um estudo estatístico acerca dos hábitos de leitura da população residente? E a Biblioteca Municipal? Não deveria, neste ponto, assumir as suas responsabilidades? Ora, ou muito me engano, ou esse estudo permitiria tirar conclusões surpreendentes: que existem, afinal, hábitos de leitura na Guarda; que existe um mercado para os livros; que só faltava arrumar as várias categorias que compõem a procura. Quando participei na organização da primeira feira do livro a sério na Guarda, em 2002, em parceria com este jornal, estive particularmente atento ao tipo de títulos vendidos. E anotei dados surpreendentes; a enorme procura de edições sobre plantas, medicinas naturais, portefólios, monografias, ensaio, crónicas reunidas de autores com alguma notoriedade por via dos media, etc. Convém ainda esclarecer o óbvio, embora muitos se esqueçam: a Bertrand é uma empresa privada. Mesmo comercializando livros, não deixa de se comportar como qualquer entidade empresarial: responder à oferta e, de preferência, exponenciá-la, ganhando com isso. Não se espera que tome a seu cargo aquilo que pertence às atribuições típicas de determinadas instituições públicas, no âmbito educativo e autárquico. Para concluir, apetece-me dizer que a Guarda não é Hay on Wye *. Mas podia, no mínimo, aspirar sê-lo.

* vila no País de Gales, conhecida por ser o maior centro de livros usados e albergar a maior concentração de alfarrabistas do planeta. É igualmente famosa pelo seu festival literário anual, que congrega autores e público provenientes das mais variadas origens.

Por: António Godinho

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