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Iraque na primeira pessoa

Crónicas

Faço parte do terceiro contingente do sub-agrupamento Alfa da GNR que se encontra no Iraque, aparcado na base militar de Tallil, no deserto do Sudoeste iraquiano, a cerca de 30 quilómetros da cidade de Al-Nassyria, na província de Dhi Qar.

Este é um testemunho daquilo que é, na realidade, a nossa missão, daquilo que se vive e se vê nesta terra e serei apenas um elo de ligação virtual entre a vossa imaginação e a realidade, nua e crua, de um país de fortes costumes e convicções profundas, submetido a uma guerra, que me parece não ser possível extinguir.

O povo iraquiano divide-se em três grandes grupos religiosos (Curdos, Sunitas e Xiitas) e as divergências entre eles são significativas e de cariz religioso, ao ponto de, por si só, existir um clima de pré-guerra civil em que se adivinham lutas sangrentas pela disputa do poder. Nenhuma facção aceita ser governada por qualquer outra. A nossa missão no Iraque, conjuntamente com todas as forças da coligação (EUA, Inglaterra, Itália, Holanda, Japão, Coreia etc.), passa pela grande necessidade de garantir a soberania do Governo provisório e salvaguardar a democracia evitando confrontos armados entre os grupos radicais e fundamentalistas. A onda de violência aumenta, empurrada pelo líder xiita (Moqtada Al-Sadr) que reivindica o poder, inflamando curdos e sunitas e combatendo as forças da coligação.

Os costumes e doutrinas existentes neste país chocam com os princípios básicos da democracia, tais como a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade ideológica… Enfim, na prática, parece-me impossível uma governação democrática, uma vez que o seu contexto insulta estas mentalidades. A cidade de Al-Nassyria é habitada por largas centenas de milhares de pessoas que vivem em condições inacreditáveis, absolutamente desumanas, num sub-mundo quase indescritível, e de uma forma tão arrepiante que é impossível não se sentir um gelo paralisar-nos os movimentos… O clima é de um rigor quase insuportável, as temperaturas entre Maio e Setembro atingem, diariamente, os 60º C, chegando mesmo a ultrapassar os 70ºC. Fora da cidade, a paisagem é árida, plana, varrida por ventos poeirentos e escaldantes, o horizonte perde-se, longínquo, num tom cor de terra, confundindo o chão com o céu. Mesmo assim, é frequente encontrar tribos de pastores que fazem lembrar as caracterizações do Antigo Testamento e alimentam os rebanhos dos minúsculos e espinhosos arbustos que germinam corajosamente de um solo ressequido, sem vida.

Na cidade de Al-Nassyria, o trânsito de carroças puxadas por burros é tão vasto quanto o de automóveis que se arrastam, enferrujados e carpindo, sem cor, esburacados por disparos, sem vidros, sem chapas de matrícula, remendados por arames, sem faróis, sem portas e “capots”, sucumbindo ao longo dos caminhos. Aqui não existem sinais nem regras de trânsito, que se faz aleatoriamente e da forma que mais convém. As ruas não são asfaltadas e nelas existe uma vala onde “dormem”, eternamente, os esgotos urbanos misturados com o lixo doméstico ali despejado por não existirem contentores nem quem o recolha. As crianças andam descalças, sujas e rotas, mostrando bem até onde pode ir a pobreza e a miséria, e correm lado a lado com as nossas viaturas blindadas, suplicando por água e alimentos. As mulheres usam túnicas negras que as ocultam completamente, com excepção do rosto que é escondido à nossa passagem. Os homens olham-nos com desprezo, mas deixando transparecer o sentimento próprio de quem vê um rato na cozinha.

Por toda a parte, existe um cheiro a podre, nauseabundo, deflagrado pela enorme lixeira que é cada metro quadrado da cidade. Vêem-se rebanhos de cabras por todo o lado, alimentando-se do lixo, comendo papel. Ao longo das ruas existem pequenos matadouros, lado a lado com o lixo, onde são dependuradas, ao sol, as carcaças dos animais em que cada um mexe e corta a parte que lhe interessa. As habitações são construídas pelos proprietários, utilizando tijolos feitos na rua com terra e palha amassada com água e depois secos ao sol. Os edifícios estão, quase todos, esburacados pelos tiroteios da guerrilha, outros são apenas escombros onde habitam famílias numerosas que sobrevivem sem se saber como. Um dia vi com os meus olhos uma criança esfaquear outra, apenas pela luta de uma garrafa de água que um de nós lhes atirou. A realidade aqui é muito dura e absolutamente indescritível e inimaginável, só Deus e muitos anos de espera poderão aproximar a vida deste povo à vida “luxuosa” de Portugal.

Por: Fernando Birra *

* do sub-agrupamento Alfa da GNR em Tallil

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