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Inferno e paraíso, cá e lá

Tresler

Um estudo divulgado no passado verão indicava que um terço dos portugueses ainda acreditavam no inferno, ou porque a queda da religiosidade ainda não tinha esmagado esta imagem tenebrosa do castigo dos maus, ou porque a vida real dos portugueses em crise se aproximara perigosamente do limiar das chamas infernais.

Em tempo de quaresma, em que nos é relembrada a nossa natureza terrena e se nos pede contenção e penitência, podemos interrogar-nos sobre a existência destes “lugares” de extremos, o paraíso, prometido aos bons, os que assumem a mensagem cristã de justiça e caridade, e o inferno, destinado aos maus, os que, de modo relapso, insistem em práticas de maldade ou egoísmo, não respeitando Deus nem o próximo. A primeira observação que podemos fazer é que a crença nestas realidades tem evoluído com os tempos e a própria religião tem construído o seu catecismo, alterando-o conforme a evolução humana, o conhecimento e a vizinhança com o poder temporal. O paraíso começou por ser um jardim, como no Génesis, muito sob a influência cultural do médio oriente, em que o jardim é o regalo dos sentidos à beira do deserto. Outras imagens da arte religiosa são representações do paraíso aprazível com paisagens humanas de anjos e serafins e a maior distância de esquadrões enormes de escolhidos à volta de um velho de barbas brancas.

O inferno, por seu lado, por influência da lixeira sempre a arder na Jerusalém dos tempos de Cristo, foi sempre um mar de chamas com as almas envolvidas por elas em esgares de sofrimento. No caso do inferno, a imaginação tornou-se mais fértil após a institucionalização do diabo como chefe dos anjos maus e capitão do inferno. Deste lado a arte tornou-se ainda mais atraente ou temível, com monstros para todos os gostos e castigos representados nas igrejas europeias. Os pecados capitais aparecerão assim representados pelos castigos que hão de sofrer os que os cometerem. A luxúria, com o sexo ou o peito devorados por serpentes; a gula com pessoas a comer os próprios membros; a soberba com o suplício da roda; a ira, com o corpo feito em pedaços; a avareza com o mergulho da pessoa em metal a arder; a preguiça com o homem a ser engolido e regurgitado por monstros alados; a inveja com o mergulho alternado num oceano de fogo e num rio gelado. (referências colhidas em “Science et Vie”, nº citado abaixo)

A crença no inferno foi perdendo força com o progresso, mas só com o iluminismo do séc. XVIII se quebrou a “pastoral do medo” e se introduziu alguma “razão” nesta área. Curioso é de ver que é numa época de renovação cultural forte (Renascimento) que essa pastoral do medo cresceu com a institucionalização da Inquisição nos países do sul da Europa, durando até ao fim do barroco. No séc. XIX a ideia de paraíso ganha forma como lugar terrestre, com a ideia de que a felicidade se conquista cá na Terra com a colaboração dos homens. O marxismo promete mesmo o céu na terra com a doutrina da ditadura do proletariado à qual se seguiria um período mirífico de sociedade sem classes. A História a prever o fim da História… Todos sabemos que não deu bom resultado.

Se hoje interrogarmos os cristãos sobre a sua ideia de paraíso e de “ressurreição dos mortos” a ela ligada, poucos terão certezas e muitos estarão céticos diante da existência de um “local” paradisíaco após a morte. Mesmo a ideia de prémio e castigo para lá das fronteiras terrestres levanta hoje cada vez mais problemas, quando hoje encontramos toda a sorte de explicações para a realidade a que chamamos “maldade”. Têm os humanos culpa do seu património genético ou das condições sociais particularmente violentas que rodearam a sua vida e determinaram muitos dos seus comportamentos? O que é um homem mau? E porque é que Ben Laden é santo para uns e monstro para outros? As perguntas contrárias também nos interpelam: Que distinção haveria entre bem e mal se tudo acabasse em nada? E será suficiente a justiça temporal?

Na obra “Ressuscitarão os mortos?”, do padre guardense Manuel Alberto Vieira de Matos, este aborda numa linguagem muito acessível a problemática do paraíso e do prémio para os que serão dignos da “vida do espírito” que Jesus Cristo veio pregar e que este autor defende como um caminho que começa na Terra e continua na morte como uma passagem para uma vida de nível superior de comunicação com Deus e que constituiria a felicidade perfeita, difícil ou impossível de descrever com as imagens terrenas, mas muitas vezes caracterizada como “luz que brilha mas não queima”. Esse acesso a um mundo de espiritualidade em que “veremos Deus” em toda a sua grandeza só foi tornado possível pela ressurreição de Cristo que assim nos possibilitou a passagem para uma vida em que também nós “ressuscitaremos”. Manuel V. de Matos interroga-se se esta vida começa logo após a morte ou se haverá um intervalo até à “ressurreição dos mortos”, como outros teólogos defenderiam. O autor defende, referindo mesmo um “feeling” pessoal, que a transição será imediata. Que melhor prova do que aquela que é dada por Cristo ao prometer na cruz ao ladrão arrependido: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”? Portanto, não haverá que ter medo da morte: ela é apenas uma passagem, uma porta de continuidade se formos justos e se aquela “vida do espírito” já começar neste mundo.

(Manuel Alberto Vieira de Matos, Ressuscitarão os mortos?, Ed. Paulus, Lisboa, 2013; Les Cahiers Science & Vie, nº especial “Paradis et Enfer”, agosto 2013.)

Por: Joaquim Igreja

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