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Incapacidade de estar sozinho

Tresler

1. Se há sentimento que as épocas festivas suscitam é o da solidariedade contra a solidão. O “solidário” e o “solitário” comungam da semelhança dos contrários. Porque se há imagem que nos enche de compaixão e complementarmente de vergonha é a solidão de alguém que não encontra uma mão amiga porque não é capaz de estender a mão, ou de desejar a proximidade do outro ou de convencer os outros de que é digno da sua proximidade. Da proximidade que “aquece o coração”. A imagem do cão sozinho abandonado nas ruas, sem rumo e sem dono, é utilizada por vezes para metaforizar a situação do limite do sofrimento humano, do sofrimento de quem já não consegue convencer os outros. No conto “Uma noite de Natal”, de Altino do Tojal, um homem passeia na noite de consoada nas ruas de uma pequena cidade e grita para si próprio porque não tem ninguém em casa à espera: «Estou a sentir-me cão».

Nos dias de hoje, a solidão é atacada com a fartura: enchendo as casas de comida e a vida de tecnologia. São estes produtos que enchem os intervalos dos programas de televisão: as mesas fartas rodeadas de pessoas radiosas, a tecnologia a fazer sorrir com os milagres que cria. Barulho a rodos, televisão sem parar, músicas e mensagens aos milhões, novos modelos de telemóveis a cada meio ano. Que tempo sobra desta febre para estarmos sozinhos se supusermos que estar sozinho não é necessariamente estar abandonado e que o vazio da solidão é o preâmbulo da concentração e da criatividade? Há na realidade uma atitude moderna de desprezo da solidão, se bem que expressamente muitas vezes se proclame o contrário. A questão é que o barulho provoca barulho, agitação, e cada vez menos a solidão é valorizada na sua componente de procura pessoal.

2. Os solitários são muitas vezes objetos de uma atitude de desprezo, como se fossem alguém cujo trajeto errado ou inabilidade não merecessem compreensão. Os tímidos constituem o escalão mais baixo dos solitários, com os escalões mais altos a ser preenchidos pelas depressões recorrentes, as adições graves ou as perturbações mentais que chegam aos gabinetes de psicoterapia. O estar sozinho torna-se violação máxima quando, na vida prisional, se bate contra a parede do isolamento ou da violência ou a própria prisão é reforçada por temporadas de “solitária”. Resistir saudável nestes ambientes é quase um milagre.

Na verdade a incapacidade de estar sozinho é um conceito que a psicologia hoje estuda como algo de que é possível estudar as raízes ou procurar a solução. Chamar “incapacidade de estar sozinho” à solidão parece contraditório mas na verdade é essa sensação de desamparo, em isolamento ou em companhia, que caracteriza a solidão. E os gabinetes de psicoterapia ou psicanálise conseguem (às vezes) descobrir na infância ou em épocas recuadas da vida a raiz de uma perturbação ou de um trauma que marcou e renasce e ciclicamente vai ser fator de fenómenos de substituição. A nossa relação com os progenitores, nomeadamente com a mãe, foi, na maioria dos casos, de molde a permitir uma sequência de vida minimamente saudável e progressivamente independente mas fatores como maus tratos, abandono, longos períodos de espera e de angústia antes da mama, da higiene ou do colo, podem ter causado disrupções que deixaram marcas se não foram compensadas devidamente. No limite essas marcas vão desencadear em certas idades fenómenos de vazio, de sensação de aniquilação, afogamento ou perda no infinito, frequentemente sob forma depressiva, sem que de repente percebamos o que causou isto e o que o desencadeou. A tentação é sempre atacar os mais próximos e preencher esse vazio. Normalmente as adições ganham aí a sua oportunidade de entrada: as famosas “drogas” mas também o alcoolismo, o jogo, o desporto ou a sexualidade desenfreada. Os mais integrados optam na atualidade pelas drogas lícitas: os ansiolíticos e antidepressivos são facilmente receitáveis pelos psiquiatras e pelos médicos de clínica geral e tornam-se terapêutica fácil mas que não resolve nada. Para pessoas com uma formação mais aprofundada ou com mais estrutura de resistência e capacidade de ver longe, para além dos recursos económicos, as psicoterapias ajudam a resolver procurando a base do problema, salvaguardando melhor o perigo de voltar à adição com que se tentou substituir o vazio ou de a substituir por outras. Na verdade, mesmo quando pensamos estar a encontrar uma solução, se esta se tornar uma adição e a tivermos de substituir por outra, sentimos que não há solução pura e simples.

Alguns, raros, mas muitas vezes sofredores anónimos por detrás das telas ou das secretárias, conseguem investir o vazio e a solidão na atividade artística antes de (ou em vez de) dar em doidos. Pessoa dizia que sempre tinha vivido sozinho e, quanto mais sozinho tinha vivido, melhor se tinha descoberto a si mesmo. No entanto os artistas não se livram do perigo de cair noutro vazio porque às vezes a arte, caminho de procura, tem os seus abismos e pode ser um degrau para um afundamento ainda maior.

(Catherine Audibert, “L’incapacité d’être seul”, Payot et Rivages, Paris, 2008)

Por: Joaquim Igreja

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